21 Nem todo aquele que diz a mim: ‘Senhor, Senhor!’ entrará no Reino dos céus, mas somente o que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.
22 Muitos dirão a mim naquele dia: ‘Senhor, Senhor! Não temos nós profetizado em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios? E, em teu nome, não realizamos muitos milagres?’
23 Então lhes declararei: Nunca os conheci. Afastai-vos da minha presença, vós que praticais o mal. (Mateus 7.21-23)
Aqui estamos diante do fim do Sermão do Monte. Nas últimas palavras do Sermão, o próprio Filho de Deus nos confronta com a realidade de que a mera profissão de fé nem sempre garante a entrada no reino dos céus. A mensagem central desses versículos é o perigo do auto engano e da auto ilusão, um tema que ele conecta diretamente à advertência contra os falsos profetas no parágrafo anterior. Ele também ressalta que esses versículos servem para enfatizar que nada tem valor diante de Deus, exceto a verdadeira retidão e santidade.
Consideremos agora esta advertência em 3 pontos, pois ela nos chama para examinar o cerne de nossa relação com Deus.
1) Primeiramente, reflitamos sobre o significado de clamar "Senhor, Senhor"
Muitos podem invocar o nome de Cristo, professar a religião cristã, professar sujeição a Ele e até mesmo usar Seu nome em ministérios públicos, buscando reconhecimento e aceitação. Contudo, nem todos que proferem essas palavras com os lábios possuem um amor sincero e uma fé verdadeira em Cristo — "... este povo se aproxima de mim e com a sua boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim…" (Isaías 29:13).
A verdadeira entrada no reino dos céus não se resume a uma declaração verbal, mas sim a fazer a vontade do Pai que está nos céus — "Por que me chamais Senhor, Senhor, não fazem o que eu mando?" (Lucas 6:46). Essa vontade, no que concerne aos cristãos, envolve especialmente a fé em Cristo para vida e salvação, a fonte de toda verdadeira obediência evangélica — "E esta é a vontade daquele que me enviou: que todo aquele que vê o Filho, e crê nele, tenha a vida eterna" (João 6:40).
A ortodoxia, a crença correta sobre Jesus, é essencial — "Todo aquele que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele, e ele em Deus" (1 João 4:15), mas depender apenas dela é um perigo, pois até os demônios creem — "Crês tu que Deus é um só? Fazes bem. Também os demônios o crêem e estremecem" (Tiago 2:19).
O que devemos ter é a ortopraxia, que é a conduta correta baseada na doutrina bíblica ensinada por Jesus — "Se vocês sabem estas coisas, bem-aventurados serão se as praticarem" (João 13:17). A palavra ortopraxia vem do grego orthopraxia, que significa "prática correta", e é essa prática que evidencia a fé viva — "Assim também a fé, se não tiver obras, por si só está morta" (Tiago 2:17).
2) Em segundo lugar, ponderemos sobre as falsas evidências de salvação que podem nos enganar
No dia do juízo, muitos dirão a Cristo: "Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? E em teu nome não expulsamos demônios? E em teu nome não fizemos muitas obras maravilhosas?". É possível pregar a doutrina correta em nome de Cristo, expulsar demônios e realizar muitos milagres, e ainda assim ser excluído do reino. Essas obras, mesmo as mais extraordinárias, podem ser realizadas com motivos errados, buscando a própria glória e não a de Cristo — "Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como ao Senhor, e não aos homens" (Colossenses 3:23) — ou impulsionadas pela carne e não pelo Espírito — "Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus" (Romanos 8:14).
Até mesmo a operação de milagres não é prova de que um homem tem fé salvadora. A ênfase naquilo que fazemos em nome de Cristo não deve obscurecer a necessidade de um relacionamento genuíno com o próprio Cristo — "E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (João 17:3).
Vejamos alguns exemplos na Bíblia que comprovam que realizar “obras maravilhosas” em nome de Cristo não garante a salvação:
Balaão, embora fosse um profeta que recebeu revelações de Deus, agiu por ganância e foi posteriormente condenado — "Tendo abandonado o reto caminho, desviaram-se e seguiram pelo caminho de Balaão, filho de Beor, que amou o pagamento pela injustiça. Mas ele foi repreendido pela sua transgressão: um animal de carga mudo, falando com voz humana, refreou a insensatez do profeta" (2 Pedro 2:15,16).
Caifás, o sumo sacerdote que profetizou que Jesus morreria pela nação, falou uma verdade espiritual sem sequer compreender seu real significado — "Mas um deles, Caifás, que era sumo sacerdote naquele ano, advertiu-os, dizendo: Vocês não sabem nada, nem entendem que é melhor para vocês que morra um só homem pelo povo e que não venha a perecer toda a nação. Ora, Caifás não disse isto por conta própria, mas, sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus estava para morrer pela nação” (João 11:49–51). Ainda assim, foi cúmplice na crucificação do Messias.
Os apóstolos, incluindo Judas Iscariotes, realizaram milagres, curas e expulsaram demônios — "Tendo Jesus convocado os doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios e para curar doenças" (Lucas 9:1). Judas recebeu poder e autoridade sobre todos os demônios, mas ainda assim, traiu Jesus e se perdeu.
Os setenta discípulos também voltaram alegres dizendo que até os demônios se submetiam a eles em nome de Jesus — "Senhor, em seu nome os próprios demônios se submetem a nós!" (Lucas 10:17). Mas Jesus os advertiu: "... alegrem-se, não porque os espíritos se submetem a vocês, e sim porque o nome de cada um de vocês está registrado no céu" (Lucas 10:20), revelando que o verdadeiro motivo de alegria não são as obras, mas a salvação.
Os judeus exorcistas, especialmente os filhos de Ceva, tentaram expulsar demônios usando o nome de Jesus sem o conhecerem de fato — "Os que faziam isto eram sete filhos de um judeu chamado Ceva, sumo sacerdote. Mas o espírito maligno lhes respondeu: Conheço Jesus e sei quem é Paulo; mas vocês, quem são? E o possuído do espírito maligno saltou sobre eles, dominando a todos e, de tal modo prevaleceu contra eles, que, nus e feridos, fugiram daquela casa" (Atos 19:14-16). Foram envergonhados e atacados pelo espírito maligno, demonstrando que o uso do nome de Jesus sem relacionamento com Ele é inútil.
Esses exemplos mostram claramente que operar sinais e milagres ou até mesmo falar verdades espirituais não é garantia de salvação. O que importa é ser conhecido por Cristo — "... se alguém ama a Deus, esse é conhecido por ele" (1 Coríntios 8:3).
3) Em terceiro e último lugar, confrontemo-nos com a terrível declaração: "Nunca vos conheci"
Cristo, o juiz, declara abertamente nunca ter tido amor ou afeição por aqueles que, apesar de suas obras em Seu nome, praticavam a iniquidade. Essa iniquidade pode residir em fazer a obra do Senhor enganosamente, pregando a si mesmos e buscando seus próprios interesses — "Evitem praticar as suas obras de justiça diante dos outros para serem vistos por eles" (Mateus 6:1,2) evidencia que a intenção do coração não pode ser mascarada por obras superficiais.
A ausência da presença de Cristo é o próprio inferno, demonstrando que sem um relacionamento genuíno com Ele, não há verdadeira luz ou vida — "Quem não é por mim é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha" (Mateus 12:30) reforça o perigo da separação espiritual.
O teste final não são as aparências externas ou os feitos realizados, mas sim a realidade íntima do coração e a genuína busca pela justiça e santidade — "...o Senhor não vê como o ser humano vê. O ser humano vê o exterior, porém o Senhor vê o coração" (1 Samuel 16:7).
John Wesley, parafraseando sobre o verso 23, diz: “nunca houve um tempo que eu o aprovasse; por mais que eles tenham salvado tantas almas, eles próprios nunca foram salvos de seus pecados. Senhor, é o meu caso?”.
John Gill explica que o "conhecer" de Cristo implica afeição e aprovação. Ele também oferece uma interpretação do talmud da frase "Eu nunca te conheci" como significando que Cristo não os admitiria em Sua presença e glória. Gill ainda contextualiza a "iniquidade" praticada por essas pessoas não necessariamente como pecados abertos, mas como fazer a obra do Senhor enganosamente, buscando seus próprios interesses em vez da glória de Cristo.
Aplicação
• Não confiar apenas na profissão verbal de fé: Meramente chamar Jesus de "Senhor, Senhor" não garante a salvação. É essencial que essa declaração seja acompanhada de um amor sincero por Cristo e uma fé verdadeira nele. Como Paulo esclarece, ninguém pode dizer "Senhor Jesus", senão pelo Espírito Santo. Não podemos confiar na nossa ortodoxia se não há ortopraxia!
• Examinar a motivação por trás do serviço cristão: Mesmo aqueles que pregam, expulsam demônios ou realizam milagres em nome de Cristo podem ser excluídos do reino dos céus se seus motivos forem impuros, buscando agradar aos homens, engrandecer a si mesmos ou promover seus próprios interesses em vez da glória de Cristo. A ênfase deve estar no próprio Cristo e no que Ele fez, e não apenas no que nós fazemos em Seu nome. Pregadores devem ser fieis dispensadores da palavra, buscando a glória de Deus e não a sua própria.
• Desconfiar de evidências superficiais de salvação: Não devemos nos iludir com o fervor emocional ou com a realização de obras impressionantes como garantia de salvação. O fervor pode ser meramente carnal. O poder de realizar milagres ou expulsar demônios pode ser concedido mesmo àqueles que não têm uma fé genuína. O próprio Judas Iscariotes tinha poder para expulsar demônios, mas se perdeu. Devemos alegrar-nos não pelos resultados aparentes, mas por termos o nosso nome escrito nos céus.
• Buscar genuína retidão e santidade: A verdadeira fé em Cristo se manifesta em fazer a vontade do Pai, o que implica uma vida de obediência evangélica e busca por santidade. Coisa alguma tem valor diante de Deus, exceto a verdadeira retidão. Qualquer coisa diferente disso, será como um “Senhor, Senhor!”. Se a nossa ideia de justificação pela fé não incluir a busca pela santificação, então não é o ensino bíblico.
• Aplicar testes de caráter e natureza interior: Em vez de focar apenas nas aparências externas, devemos examinar o caráter interior, buscando os sinais distintivos de um verdadeiro crente, como humildade, mansidão e fome e sede de justiça, conforme ensinado no Sermão do Monte.
• Reconhecer o perigo do autoengano: A auto decepção sobre a nossa salvação geralmente ocorre quando dependemos de falsas evidências. É crucial enfrentar honestamente essa verdade e buscar em Cristo a verdadeira fome e sede de justiça. No dia do juízo, haverá muitas surpresas, com pessoas que foram louvadas neste mundo sendo excluídas do reino.
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