31 julho 2022

Para que filiar-se a uma igreja?

Por Mark Brown e Larry Wilson 

Alice estava lívida! Era a primeira vez que visitava aquela igreja, “e também a última”, pensou ela. A igreja tinha celebrado a Ceia do Senhor.

— Sou crente já faz quatro anos e o pastor teve o desplante de me mandar ficar de fora da comunhão! fumegou ela.
— Ele disse que quem estivesse com problemas com Deus ou com a Sua igreja que tratasse de resolvê-los antes de poder participar da mesa do Senhor, e me incluiu nisso somente porque não sou membro de igreja. Que ousadia!

Não é raro em nossos dias que crentes sinceros em Cristo, como Alice, pensem que filiar-se a uma igreja seja uma questão de opção. E, diante de tantas outras opções — livros, fitas de áudio e vídeo, programas de rádio e TV, recursos da Internet, grupos paraeclesiásticos etc. — filiar-se à igreja está lá no final da lista, se é que está na lista! Muitos jamais levaram em conta que o compromisso com uma congregação tenha lá toda essa importância, ou que seja assim tão agradável. Quase sempre ficam chocados quando ouvem que historicamente os cristãos consideram que seja essencial, e não opcional, filiar-se à igreja.

Seria arbitrária esta histórica convicção cristã? Seria legalista? O que é que a Bíblia tem a dizer sobre ser membro de uma igreja? Achamos que ela diz o suficiente. Portanto, considere conosco dez razões bíblicas pelas quais todo cristão declarado deve filiar-se a uma igreja local.

Filiar-se à igreja é ordem de Jesus

Em primeiro lugar, o nosso Senhor Jesus Cristo ordenou aos Seus seguidores que se filiassem à igreja. Em Mateus 16.18, Jesus diz aos Seus discípulos: “eu edificarei a minha igreja”. Ele descreve a igreja como o templo da nova aliança, e todos os que confessam que Jesus é o Senhor são as pedras desse edifício (Mt 16.16; 1Pe 2.5; Ef 2.19-20).

Em Mateus 28.19-20, Jesus confirma e amplia a sua declaração anterior ao ordenar aos Seus seguidores que façam discípulos, batizando-os e ensinando-os depois. O cumprimento dessa grande comissão resulta na inclusão dos convertidos à igreja. Por que dizemos isso? Porque a ordenança do batismo faz parte da grande comissão. Conquanto o batismo do Espírito Santo nos acrescente à igreja invisível (1Co 12.13), não devemos manter invisível a nossa salvação, temos que expressá-la externamente (Rm 10.9-10). O batismo de água, externo e visível, simboliza esta realidade invisível.

Atos 2.41 descreve como a igreja apostólica pôs esse princípio em prática: “Então, os que lhe aceitaram a palavra foram batizados, havendo um acréscimo naquele dia de quase três mil pessoas”. Houve um acréscimo a que? Atos 2.27 dá a resposta: “E todos os dias acrescentava o Senhor à igreja aqueles que se haviam de salvar”. Essa era a igreja visível, os apóstolos acompanhavam atentamente quem eram os batizados e até os contavam.

Cristo ordenou que fôssemos batizados. Ao ordenar que sejamos batizados, ordena-nos que também sejamos acrescentados à igreja. Noutras palavras, Ele ordena que nos filiemos à igreja, deseja que o nosso relacionamento com Ele seja honesto e perceptível (Mt 10.32) e que seja também um relacionamento corporativo (Hb 10.24-25).

O Velho Testamento ensina a filiação eclesiástica

Em segundo lugar o Velho Testamento ensina que os crentes devem se filiar à igreja. Os israelitas eram o povo da velha aliança de Deus. Deus ordenara a circuncisão como selo daquela relação pactual, e como sinal de membro da comunidade do pacto (Gn 17.7, 10-11). O Novo Testamento identifica essa velha comunidade da aliança como “a igreja” (At 7:38).

Se você fosse estrangeiro teria que ser circuncidado para se tornar membro de Israel antes de poder celebrar a Páscoa (Êx 12.43-44, 48). Noutras palavras, você teria que se “filiar à igreja” antes de poder participar da mesa do Senhor. Se não fosse circuncidado, não interessaria a sua história nem a sua fé subjetiva, você seria excomungado do meio do povo de Deus (Gn 17:14).

Pode ver o paralelismo com o Novo Testamento? O batismo é a circuncisão do Novo Testamento (Cl 2.11-12) e marca a sua entrada na nova comunidade do pacto, a igreja (Gl 3.27, 29; 6:15-16; Fp 3.3). A Ceia do Senhor é agora a nova Páscoa do pacto (cf. Mt 26.17-19; 1Co 5:7). Assim, da mesma maneira que era necessário ser circundado para se tornar membro de Israel antes de poder celebrar a Páscoa, do mesmo modo é necessário tornar-se membro da igreja antes de poder participar da Ceia do Senhor. Por isso é que, os que “foram batizados” e “acrescentados à igreja” eram os que participavam do partir do pão com os apóstolos (At 2.41-42; 47).

A filiação eclesiástica é inferência Neotestamentário

Terceira, o Novo Testamento pressupõe que todo convertido se filia à igreja. A conversão inclui ser acrescentado à igreja local visível (At 2.41, 47; 14:21-23). Era impensável que alguém pudesse abraçar a Cristo e optar depois por não se filiar à igreja do Senhor. Na verdade, quem não era membro da igreja era considerando como incrédulo (Mt 18.17). O cristianismo bíblico é intensamente pessoal, sempre, mas nunca particular e individualista.

O Novo Testamento enfatiza vigorosamente o caráter corporativo ou grupal do cristianismo. Ele fala do ajuntamento dos crentes como sendo, por exemplo, o corpo de Cristo, a noiva de Cristo, a família da fé, o templo do Espírito Santo, a comunhão dos santos, a nação santa, o povo de Deus, a família de Deus etc. Nos dias dos apóstolos, todo convertido filiava-se à igreja, senão o fizesse, não era considerado convertido.

A filiação eclesiástica é parte integrante da salvação

Quarta, o conceito bíblico de salvação envolve ser membro de igreja. Na Bíblia, vir a Cristo e à Sua igreja é uma coisa só, não duas. As pessoas hoje recebem a Cristo numa campanha de evangelização e só depois é que decidem se vão ou não se filiar a uma igreja. Algumas vezes nunca o fazem. A Palavra de Deus, no entanto, considera que vir a Cristo e filiar-se à Sua igreja são os dois lados de uma mesma coisa: assim como o lado de dentro e o lado de fora da salvação como um todo.

Internamente, você se volta para Deus e clama para que Ele lhe salve por meio do sangue e da justiça de Jesus Cristo.

Externamente, você se identifica como pertencendo a Cristo pela profissão da sua fé diante da igreja e na adoração, aprendizado e testemunho contínuos juntamente com a assembleia (Rm 10.9-10; Mt 10.32; At 2.41-42; Hb 10.25). Fazer parte de Cristo é, na Bíblia, fazer parte do corpo de Cristo (1Co 12.13, 27; Rm 12.5; Ef 5.29-30). Biblicamente, os cristãos servem a Cristo, não em isolamento autossuficiente, mas como membros vivos do Seu corpo.

A filiação eclesiástica patenteia a ordem eclesiástica

Quinta, as tantas prescrições bíblicas sobre ordem na igreja deixam claro que Deus espera que os crentes se filiem às igrejas locais. Deus estabelece requisitos de admissão (At 2.47), provê meios de expulsão da igreja (Mt 18.17; 1Co 5.4-5), ordena que haja líderes (ou oficiais) como pastores, presbíteros e diáconos (Ef 4.11-12; At 14.23; 1Tm 3.1-13). Só este último fato já evidencia que os crentes terão que se filiar à igreja. Pois, como é que haveria oficiais se não houvesse membros para os eleger e seguir? De onde é que viriam pastores, presbíteros e diáconos? Para que serviriam eles?

Em 1 Timóteo, depois de dar instruções sobre a oração no culto público (2.1-8), sobre as mulheres no culto público (2.9-15) e sobre a eleição de presbíteros e diáconos (3.1-13), o apóstolo Paulo explica: “para que, se eu tardar, fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna e baluarte da verdade” (3.15). Tais regras seriam inúteis, se os crentes não fossem membros de igrejas locais organizadas.

Muitos mandamentos bíblicos denotam filiação eclesiástica

Sexta, há muitas outras instruções bíblicas que só podem ser obedecidas se você for membro de igreja. Cristo instrui os Seus seguidores para que celebrem a Ceia do Senhor (Lc 22.19). Mas a Mesa do Senhor está posta apenas para os que são membros batizados de Sua igreja (veja abaixo a segunda razão).

Deus ordena que os cristãos amem a seus irmãos e os sirvam (Gl 6.2; 1Pe 3.17; 1Jo 3.14). Mas como é possível reconhecer os irmãos? Alguns se dizem crentes, e não o são. Como é que os crentes podem reconhecer a outros se não for pela identificação de pertencerem a uma igreja visível que prega o evangelho?

O que prevalece hoje é um espírito de autonomia que despreza a autoridade. Isso não é nada novo (2Pe 2.10). Mas Deus ordena aos Seus filhos redimidos que “acateis com apreço os que [...] vos presidem no Senhor e vos admoestam” (1Ts 5.12) e que “obedecei aos vossos guias e sede submissos para com eles” (Hb 13.17). Mas como será isso possível se você não se filiou à igreja que eles supervisionam? De que outra maneira seria possível saber quem são aqueles a quem Deus colocou sobre você?

Poderíamos dar muitos outros exemplos, mas esses devem bastar para mostrar que existem muitos outros mandamentos bíblicos que os crentes só podem obedecer se estiverem filiados à igreja. Destarte, recusar-se a se filiar à igreja de Jesus Cristo torna a pessoa culpa de inúmeros pecados de omissão, e de desobediência ao Senhor.

O cuidado pastoral exige filiação eclesiástica

A nossa sétima razão relaciona-se à sexta, mas achamos que será útil citá-la em separado. Seria impossível cuidar biblicamente da ovelha de Cristo sem a filiação à igreja. Deus ordena que os presbíteros pastoreiem o Seu rebanho no exercício do cuidado e da supervisão pastoral. A igreja é o rebanho que o Senhor deixou aos cuidados deles (At 20.28; 1Pe 5.1-4). Eles têm que concentrar a atenção naqueles que se filiaram à igreja sobre a qual Deus os fez supervisores (1Co 5.12). Os que visitam à igreja, porém, não estão sob a jurisdição dos presbíteros. Se não se filiarem a ela, como é que poderão ser pastoreados adequadamente? Além do mais, o bom pastor conhece as suas ovelhas pelos seus nomes e é também conhecido por elas (Jo 10.3-4, 14). Os que estão sob o seu pastorado não precisariam fazer o mesmo (1Pe 5.1-4)? Como poderão pastorear o rebanho se não souberem quem faz parte dele?

Em Mateus 18.15-18 o nosso Senhor Jesus ensina aos Seus discípulos como devem lidar com o pecado e o conflito no corpo de Cristo. Se um cristão professo está em pecado e nele persiste teimosamente sem se arrepender, a igreja deverá excomungá-lo e considerá-lo como um incrédulo (cf. 1Co 5). Se se arrepender deverá ser restaurado (2Co 2.5-11). O objetivo principal da disciplina é o socorro e a restauração (Gl 6.1). Mas como seria possível essa prática à igreja se não houvesse uma distinção objetiva entre os que são “de dentro” e os que são “de fora” (1Co 5.12-13)? É impossível obedecer às instruções de Cristo sobre a supervisão pastoral e a disciplina eclesiástica se os crentes não se tornarem membros de igreja.

A vida prática da igreja abrange a filiação eclesiástica

Oitava, há muitas questões de ordem prática que a igreja não pode realizar bem sem a filiação eclesiástica objetiva. Deus ordena que “Tudo, porém, seja feito com decência e ordem” (1Co 14.40). As igrejas precisam levantar pastores, eleger presbíteros e diáconos, definir orçamentos, comprar propriedades, construir locais de reunião etc. São decisões importantes. Mas sem membros objetivamente definidos, como seria possível decidir de modo justo — “com decência e ordem” — quem tem ou não o privilégio de votar?

O evangelismo bíblico exige a filiação eclesiástica

Nona, é impossível o evangelismo bíblico sem a filiação eclesiástica. A maior parcela do evangelismo de hoje reforça o tomar decisões. Jesus, no entanto, nos ordena a fazer discípulos. O medidor bíblico do sucesso evangelístico não está marcando muitas decisões professadas, só está alistando pessoas nos privilégios e nas responsabilidades de seguir a Cristo. Biblicamente o evangelismo só estará completo quando os convertidos estiverem matriculados na escola de Cristo e abraçados ao seio da família visível dos crentes (Mt 28.19-20; cf. 1Co 12:13; At 2.41, 47).

O amor de Deus clama pela filiação eclesiástica

Décima e última, o grande amor de Deus pela igreja convida os crentes a que se filiem à igreja. A Bíblia reforça repetidamente o quão vital e importante é a igreja para o Deus vivo e Trino.

A igreja estava no coração de Deus na Sua obra de criação (Ef 3.9-11). A igreja estava no coração de Deus, na Sua obra de salvação (Mt 16.18; Ef 5.25). A igreja tem a promessa da Sua presença especial (Hb 2.12; Mt 18.20). Se a igreja é tão importante para o Senhor, também não deveria ser para todos aqueles que O amam? Como é que você pode amar ao Senhor e ao mesmo tempo se desviar para longe daquilo que o Senhor ama? Será que isso não quer dizer que todo o crente tem que se identificar abertamente com a igreja de Cristo?




16 julho 2022

A Imagem de Deus

Assim Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. Gênesis 1:27 (NAA) 
As Escrituras ensinam (Gn 1.26,27; 5.1; 9.6; 1Co 11.7; Tg 3.9) que Deus fez o homem e a mulher à sua própria imagem, assim de que os seres humanos são semelhantes a Deus, como nenhuma outra criatura terrena é. A dignidade especial dos seres humanos está no fato de, como homens e mulheres, poderem refletir e reproduzir - dentro de sua própria condição de criaturas- os santos caminhos de Deus. Os seres humanos foram criados com esse propósito e, num sentido, somos verdadeiros seres humanos na medida em que cumprimos esse propósito.

O que tudo envolve essa imagem de Deus na humanidade não está especificado em Gn 1.26,27, mas o contexto da passagem nos ajuda a defini-lo. O texto de Gn 1.1-25 descreve Deus como sendo pessoal, racional (dotado de inteligência e vontade), criativo, governando o mundo que criou, e um ser moralmente admirável (pois tudo o que criou é bom). Assim, a imagem de Deus refletirá essas qualidades. Os versículos 28-30 mostram Deus abençoando os seres humanos que acabara de criar, conferindo-lhes o poder de governar a criação, como seus representantes e delegados. A capacidade humana para comunicar-se e para relacionar-se tanto com Deus como com outros seres humanos aparece como outra faceta dessa imagem.

Por isso, a imagem de Deus na humanidade, que surgiu no ato criador de Deus, consiste em: (a) existência do homem como uma "alma" ou "espírito" (Gn 2.7), isto é, como ser pessoal e autoconsciente, com capacidade semelhante à de Deus para conhecer, pensar e agir; (b) ser uma criatura moralmente correta - qualidade perdida na queda, porém agora progressivamente restaurada em Cristo (Ef 4.24; Cl 3.10); (c) domínio sobre o meio ambiente; (d) ser o corpo humano o meio através do qual experimentamos a realidade, nos expressamos e exercemos domínio e (e) na capacidade que Deus nos deu para usufruir a vida eterna.

A queda deformou a imagem de Deus não só em Adão e Eva, mas em todos os seus descendentes, ou seja, em toda a raça humana. Estruturalmente, conservamos essa imagem no sentido de permanecermos seres humanos, mas não funcionalmente, por sermos agora escravos do pecado, incapazes de usar nossos poderes para espelhar a santidade de Deus. A regeneração começa em nossa vida o processo de restauração da imagem moral de Deus. Porém, enquanto não formos inteiramente santificados e glorificados, não podemos refletir, de modo perfeito, a imagem de Deus em nossos pensamentos e ações - como fomos criados para fazer e como o Filho de Deus encarnado refletiu na sua humanidade (Jo 4.34; 5.30; 6.38; 8.29,46).

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Fonte: Bíblia de Estudo de Genebra. São Paulo e Barueri, Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999, pag.10.

10 julho 2022

Sobre desejo e tentação - Existe a possibilidade de haver cristãos gays?

Por Milton Jr. 

Recentemente as redes sociais reacenderam uma discussão acerca da homossexualidade, no mínimo, complicada. Alguns têm defendido que não há problema com o desejo sexual pelo mesmo sexo, desde que não haja a consumação do ato. Ou seja, alguém pode continuar tendo desejos homossexuais sem crise na consciência, desde que se mantenha celibatário.

Para compreender esta questão corretamente é preciso olhar para o ensino bíblico acerca dos desejos e da tentação.

Deus fez o homem com a capacidade de desejar. Existem inúmeras coisas lícitas de se desejar, algumas, inclusive, estimuladas pela Escritura. O desejo pelo episcopado, por exemplo, é chamado de excelente por Paulo (1Tm 3.1). Pedro exorta os cristãos a desejarem ardentemente o genuíno leite espiritual (1Pe 2.2).

Entretanto, até mesmo bons desejos podem se tornar maus. Você aprende isso com Paulo, quando ele afirma que “todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1Co 6.12). Algo semelhante foi dito pelo Senhor a Caim: “o seu desejo será contra ti, mas cumpre a ti dominá-lo” (Gn 4.7b). A razão para esta ordem para dominar o desejo em vez de ser dominado por ele havia sido apresentada anteriormente pelo Senhor: “Eis que o pecado jaz à porta” (Gn 4.7a) . O verbo traduzido por jazer neste texto traz a ideia de “estar em uma posição deitada, descansando, mas pronto para a ação”[1].

Isto lembra a dinâmica do pecado, conforme ensinada por Tiago. O homem é tentado pelo seu desejo, quando atraído e seduzido, ou seja, quando fisgado pelo desejo (Tg 1.14).

Diante disso, podemos afirmar que não há problema com o desejo legítimo (lícito), a não ser que você, dominado por eles, peque para conseguir o que tanto deseja. A tentação se dá quando você está diante da possibilidade de pecar em nome do seu desejo.

Mateus narra o episódio em que Jesus foi tentado pelo diabo. Após jejuar 40 dias ele teve fome. O desejo por comida é natural e não é pecaminoso em si. O diabo aparece e instiga Jesus a mandar as pedras se transformarem em pão. Bem, se o desejo por comida não é pecado e se Jesus era poderoso para fazer com que pedras se transformassem em pães, qual o problema de ele mandar isso acontecer? É tentação querer comer pão para matar a fome?

É preciso olhar o texto com atenção. O diabo está questionando: “Se és Filho de Deus, manda estas pedras se transformarem em pães”. Percebeu o que está acontecendo aqui? Se você notar os versículos anteriores, verá que ao ser batizado Jesus ouviu a voz do Pai, vinda do céu, que dizia: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3.17). O que o diabo está colocando em dúvida aqui é a Palavra de Deus. Se Jesus aceitasse a sugestão de mandar que pedras se transformassem em pães, estaria claro que ele não confiava no que o Pai já havia dito acerca dele. Para ter o seu desejo lícito satisfeito ele teria de duvidar que era mesmo o Filho de Deus, pecando para conseguir o pão. Isto explica a resposta de Jesus, citando um texto do AT: “Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.4).

Jesus não se deixou dominar pelo desejo, colocando Deus à prova a fim de conseguir o pão, mas afirmou que estava bem certo de sua filiação. O fato de ter ou não o pão, não mudaria a verdade revelada por seu Pai. Quando o diabo deixou a Jesus, os anjos de Deus o serviram (Mt 4.11).

Até aqui vimos que há coisas lícitas que podem ser desejadas e satisfeitas, mas que quando você peca para obtê-las (ou peca porque não as conseguiu), significa que elas estão dominando o seu coração e elas se tornaram um mau desejo.

Além disso, está claro nas Escrituras que há desejos que são maus em si mesmos. Biblicamente, não existe a possibilidade de se desejar algo que seja contrário à Lei de Deus, sem que isso já seja considerado pecado pelo Senhor. O sermão do monte traz vários exemplos disso. Em seu ensino, Jesus deixou claro que matar é pecado, mas que o simples desejo de matar, no coração, expresso em ira pecaminosa, já constitui homicídio diante de Deus (Mt 5.21-26).

Quando ele trata do adultério, a questão fica ainda mais clara. Para os fariseus, o adultério estava somente no ato consumado, mas Jesus vai além e diz: “qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela” (Mt 5.27). É preciso pensar um pouco a respeito do que está sendo ensinado aqui. O desejo sexual não é pecaminoso em si. Sendo o homem constituído para crescer, multiplicar e encher a terra, tal desejo é natural nele.

Entretanto, há um limite bem estabelecido pelo Senhor para a satisfação do desejo sexual. Este desejo só pode ser satisfeito de forma correta e piedosa dentro do casamento, tal qual estabelecido pelo Senhor: (1) um homem e (1) uma mulher. Qualquer tipo de satisfação sexual que não esteja dentro da relação pactual do casamento é pecado. Assim, apesar de um homem poder desejar um casamento, ele não pode desejar a mulher do próximo ou outra mulher que não seja a sua (Lv 20.10-12), não pode desejar se deitar com outro homem como se fosse mulher (Lv 20.13), tampouco pode se ajuntar com um animal (Lv 20.15).

Sei que aqui alguém pode questionar apontando para o fato de que o que está relatado em Levítico não é apenas o desejo, mas a consumação do ato. Eu digo que sim, isto é verdade! Mas pense no que está descrito aqui à luz do ensino do Senhor Jesus Cristo em Mateus 5. Se o desejo entre um homem e uma mulher (que é biblicamente lícito) é pecado quando ocorre fora do limite do casamento, ainda que seja desejado apenas no coração (o olhar com intenção impura), por que não seria também pecado o desejo por alguém do mesmo sexo, que é biblicamente ilícito, ainda que somente no pensamento?

Desta forma:

O desejo por coisas lícitas não é pecado – Não há problema em um homem desejar ter relações sexuais com uma mulher e buscar satisfação deste desejo no casamento.

O desejo por coisas lícitas se torna pecado quando domina o homem e ele peca para conseguir o que quer, ou por não ter conseguido o que quer – Tanto é pecado um homem desejar relações sexuais com uma mulher fora do casamento, quanto consumar tal ato (Mt 5.27; 1Co 6.12).

O desejo por coisas ilícitas é pecaminoso em si, ainda que não levado à cabo – Tanto o desejo de ter relações com pessoas do mesmo sexo, quanto a consumação deste ato é errado.

Os que advogam a existência de uma identidade homossexual não estão levando em conta:

1. Que a queda tornou o homem inclinado a todo o mal;

2. Que “todo pecado, tanto o original [imputado a todos] como o atual [cometido por todos], sendo transgressão da justa lei de Deus e a ela contrária, torna, pela sua própria natureza, culpado o pecador e por esta culpa está sujeito à ira de Deus e à maldição da lei, e, portanto, sujeito à morte com todas as misérias espirituais, temporais e eternas” (CFW VI-6);

3. Que a salvação em Cristo faz com que o homem se torne uma nova criatura e, vivificado por Cristo, ele pode agora, no poder do Espírito Santo mortificar os desejos e feitos da carne.

Assumir que existam “cristãos gays” ou “cristãos lgbt+” é negar a obra de santificação progressiva operada pelo Senhor na vida dos seus filhos, obra que os torna dia após dia menos parecidos com Adão e mais parecidos com Cristo. Apesar das lutas contra o pecado, o Senhor está formando em seus filhos do caráter do seu Filho Eterno.

Outra questão importante. Quando se fala em um “cristão gay”, parte-se do princípio de que a homossexualidade é parte integrante da identidade da pessoa. Entretanto, quando a Escritura chama o pecador pelo nome do seu pecado, significa que ali está alguém que “vive na prática do pecado” (1Jo 3.9), logo, alguém que não é nascido de Deus. É por conta disso que Paulo afirma que os “injustos não herdarão o reino de Deus”, e continua dizendo, “não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus” (1Co 6.9-10).

Após descrever que estes que vivem na prática do pecado não herdarão o reino, o apóstolo aponta para obra de Cristo que os livra da escravidão do pecado: “Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus” (1Co 6.11).

Portanto, é uma falácia falar em cristão lgbt. Tão falacioso quanto falar em cristão adúltero, cristão ladrão, cristão mentiroso, etc. A obra de Cristo torna o pecador santo. Ele luta contra o pecado, mas não pode mais ser identificado por ele, pois, “se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2Co 5.17).

[1] Wanson, J. (1997). Dicionário de línguas bíblicas com domínios semânticos: hebraico (Antigo Testamento) (ed. Eletrônico). Oak Harbor: Logos Research Systems, Inc.