21 fevereiro 2021

A Defesa de nossa Fé

“Defesa da fé” é uma das definições da apologética. No entanto, defender a fé não é tanto um exercício acadêmico, mas uma responsabilidade de todo cristão. A defesa da fé precisa ser vivida, não apenas estudada. Como? Lemos em 1 Pedro 3.15: "Santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós”.

Em primeiro lugar, defendemos nossa fé quando honramos ao Senhor em nosso coração. Precisamos temer e honrar o Senhor mais do que tememos e honramos pessoas ou ideias. A palavra do Senhor importa mais do que as palavras de homens e mulheres. A Bíblia diz: “A palavra do Senhor permanece eternamente” (1Pe 1.25). Quando o evangelho do nosso Senhor transforma nossa vida e, depois, nossos relacionamentos e comunidades, estamos defendendo nossa fé. Como observou William Edgar, a apologética é relevante a cada dia não por causa do nosso conhecimento sobre a nossa cultura, mas por causa das boas-novas do evangelho, que sempre são frescas e poderosas. Viver em obediência às Escrituras é viver em defesa da nossa fé.

Em segundo lugar, podemos viver defendendo nossa fé vivendo com esperança. Quando escreveu a um povo disperso e perseguido, Pedro supôs que os cristãos viveriam com tamanha esperança que as pessoas lhes perguntariam como e por quê. Hoje, essa esperança é contrária à autoajuda e ao desespero com os quais a maioria das pessoas vive, pois essa esperança não é uma mudança humana. Essa esperança é fé segura na revelação e ressurreição de Jesus Cristo, que traz consigo a promessa de uma grande herança. Os cristãos podem exultar: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (1Pe 1.3). Essa esperança é central ao significado de viver como cristão.

Em terceiro lugar, vivemos defendendo nossa fé quando estamos preparados para dar uma resposta. Pode ser uma resposta àqueles com quem conversamos ou, mais especificamente, àqueles que nos perguntam por que temos esperança. Muitas vezes, pensamos que isso exige muito estudo e muito conhecimento filosófico, cultural e de outras religiões, e esse conhecimento é possível e útil. Mas você não precisa disso antes de começar a defender sua fé; Pedro diz que devemos estar preparados para explicar a nossa esperança, não o nosso conhecimento (1Pe 1.13)! Mas estamos vivendo em diálogo com outros? Estamos usando a criação, a moralidade, o desejo, a beleza, os relacionamentos, a paternidade e a eternidade como temas de diálogo com outros, em que a nossa esperança (como informada pelas Escrituras) pode transparecer? Você está preparado para responder as perguntas: em quê você crê? Por que você crê nisso?

Em quarto lugar, defendemos nossa fé quando vivemos com ternura e temor, ou com mansidão e respeito. Quando nos defendemos, é fácil passar a atacar os outros. Pode existir um momento em que precisamos partir para a ofensiva contra ideias (2Co 10.5), mas precisamos nos lembrar de que não estamos defendendo a nós mesmos; estamos defendendo a esperança que temos em Cristo. Isso precisa ser feito com simpatia, uma postura respeitosa e uma consciência boa. Precisamos nos despir de toda malícia, engano, hipocrisia, inveja e calúnia (1Pe 2.1), até mesmo no contexto de perseguição e ódio. Contudo, é assim que devemos viver enquanto defendemos nossa fé (1Pe 2.13-19). “É melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que praticando o mal”(1Pe 3.17).

Para tudo isso precisamos do dom do Espírito Santo em nós para que possamos honrar o Senhor e viver com esperança (Rm 15.13) e precisamos que ele opere por meio de nós para que possamos viver e defender nossa fé apropriadamente (Jo 15.26). Assim, ao refletir como você deve defender sua fé, pense sobre sua própria vida, não a vida de outros: Sua vida honra o Senhor? Sua vida brilha na esperança? Sua vida está preparada para se envolver com outros? Sua vida é vivida com mansidão e respeito?

Fonte: Bíblia de Estudo Herança Reformada

06 fevereiro 2021

Batismo de Crianças: Algumas Considerações

Augustus Nicodemus Lopes 

A prática de batizar os filhos dos cristãos vem desde os primórdios do cristianismo. Pais da Igreja, como Irineu (século II), se referem ao batismo infantil. Orígines (século IV) foi batizado quando criança. Hoje, milhares de cristãos evangélicos no mundo continuam a prática, embora alguns pais permitam que seus filhos sejam batizados apenas porque faz parte da tradição religiosa na qual nasceram. Para outros, o batismo é um ato pelo qual consagram seus filhos ao Senhor, com votos solenes de educá-los nos caminhos de Deus até, a idade da razão.

Evidentemente nem todos os evangélicos concordam que o batismo infantil seja a única maneira de se fazer isso. Muitos preferem apresentar seus filhos ao Senhor, sem batizá-los, pois acreditam que o batismo é somente para adultos que crêem. Porém, tanto os que batizam seus filhos, quanto os que os apresentam, têm um desejo só, de vê-los crescer nos caminhos do Evangelho, e, quando chegarem à idade própria, publicamente professar sua fé pessoal em Cristo Jesus.

Alguns me perguntam por que apresentei meus quatro filhos para serem batizados, quando cada um ainda não tinha mais que dois meses. Minha resposta é que acredito estar seguindo a tradição bíblica, que remonta ao tempo do Antigo Testamento, e que não foi abolida no Novo, de incluir os filhos dos fiéis na aliança de Deus com o seu povo. Batizei meus filhos crendo que, através desse rito iniciatório, eles passaram a fazer parte da Igreja visível de Cristo aqui na terra. Minha crença sé baseia no fato de que, quando Deus fez um pacto com Abraão, incluiu seus filhos na aliança, e determinou que fossem todos circuncidados (Gn. 17.1-14). A circuncisão, na verdade, era o selo da fé que Abraão tinha (ver Rm 4-3,11 com Gn 15.6), mas, mesmo assim, Deus determinou-lhe que circuncidasse Ismael e, mais tarde, Isaque, antes de completar duas semanas (Gn. 21.4). Abraão creu e o sinal da sua fé foi aplicado à Isaque, mesmo quando este ainda não podia crer como seu pai. Mais tarde, quando Moisés aspergiu com o sangue da aliança as tábuas da Lei dada por Deus, aspergiu também todo o povo presente no monte Sinai, incluindo obviamente as mães e seus filhos de colo (Hb 9.19-20).

Estou persuadido de que a Igreja cristã é a continuação da Igreja do Antigo Testamento. Símbolos e rituais mudaram, mas é a mesma Igreja, o mesmo povo. O Sábado tomou-se em Domingo, a Páscoa, em Ceia, e a circuncisão, em batismo. Os crentes são chamados de "filhos de Abraão" (Gl 3.7,29) e a Igreja de "o Israel de Deus" (Gl 6.16). Não é de se admirar que Paulo chame o batismo de "a circuncisão de Cristo" (Cl 2.11-11).

Foi uma grande alegria ter meus filhos batizados e vê-los, assim, receber o selo da fé que minha esposa e eu temos no Senhor Jesus. Deus sempre tratou com famílias (Dt 29.9-12), embora nunca em detrimento da responsabilidade individual. Assim, Deus mandou que Noé e sua família entrassem na arca (Gn. 7.1), chamou Abraão e sua família (Gn 12.1-3) e castigou Acã, Coré e suas famílias juntamente. Paulo, ao refletir sobre a história de Israel e ao mencionar a passagem dos israelitas pelo Mar Morto, diz que todo o povo foi batizado com Moisés, na nuvem e no mar inclusive as crianças, é claro, pois havia milhares delas (1 Co 10.1-4). Não é de se admirar, portanto, que Pedro, no dia de Pentecostes, ao chamar os ouvintes ao arrependimento, à fé em Cristo e ao batismo, disse-lhes que a promessa do Espírito Santo era para eles e para seus filhos (At 2.38-39). E não é de admirar que os apóstolos batizavam casas inteiras em suas viagens missionárias: Paulo batizou Lídia e toda sua casa (,At. 16.15), o carcereiro e todos os seus (At 16.3233), a casa de Estéfanas (1 Co 1.16). É verdade que não se mencionam crianças nessas passagens, mas o entendimento mais natural de "casa" e "todos os seus" é que se refira à família do que creu e fica difícil imaginar que, se houvesse crianças, elas teriam sido excluídas. Pois, para Paulo, os filhos dos crentes eram "santos" (1 Co 7.14), ao contrário dos filhos dos incrédulos. Talvez ele estivesse seguindo o que o Senhor Jesus havia dito, que não impedissem as crianças de virem a Ele (Mc 10.13-16).

Compreendo a dificuldade que alguns terão quanto ao batismo infantil, pois não há exemplos claros de crianças sendo batizadas no Novo Testamento. É verdade. Mas é igualmente verdade que não há nenhum exemplo de um filho de crente sendo batizado em idade adulta. Neste caso, talvez seja mais seguro ficar com o ensino do Antigo Testamento., Se os judeus que se converteram a Cristo não podiam batizar seus filhos, era de se esperar que houvesse alguma proibição neste sentido por parte dos apóstolos, já que estavam acostumados a incluir seus filhos em todos os aspectos da religião judaica. Mas não há nenhuma proibição apostólica quanto a isso.

Compreendo também que alguns têm dificuldades com o batismo infantil por causa da prática da Igreja Católica e de algumas denominações evangélicas, que adotam a idéia da regeneração batismal, isto é, que, pelo batismo, a criança tenha seus pecados lavados e seja salva. Pessoalmente não creio que seja este o ensino bíblico. O batismo infantil não salva a criança. Meus filhos terão de exercer fé pessoal em Cristo Jesus. Não serão salvos pela minha fé ou da minha esposa. Eles terão de se converter de seus pecados e crer no Senhor Jesus, para que sejam salvos. O batismo foi apenas o ritual de iniciação pelo qual foram admitidos na comunhão, da Igreja visível. Simboliza a fé dos seus país nas promessas de Deus quanto aos seus filhos (cf. Pv 22.6; At 2.38; At 16.31) e expressa os termos da aliança que nós e nossos filhos temos com o Senhor (Dt ' 6.6,7; Ef 6.4). Se, ao crescer, uma criança que foi batizada resolver desviar-se dos caminhos em que foi criada, é da sua inteira responsabilidade, assim como os que foram batizados em idade adulta, e que se desviam depois.

Certamente que o Novo Testamento fala do batismo como sendo uma expressão de fé e de arrependimento por parte daqueles que se convertem a Cristo - coisas que uma criança em tenra idade não pode fazer. Por outro lado, lembremos que passagens assim não tinham em vista os filhos dos fiéis, mas toda uma primeira geração de adultos que se converteram pela pregação do Evangelho.

Mas, ao fim, tanto os que batizaram seus filhos quanto os que os apresentaram, devem orar com eles e por eles, serem exemplos de vida cristã, levá-los à Igreja, instruí-los nas Escrituras e viver de tal modo que, ao crescer, os filhos desejem servir ao mesmo Deus de seus pais.

Fonte: Thirdmill

02 fevereiro 2021

As vacinas contra a COVID-19 e a Providência Divina

Jean Marques Regina 
Thiago Rafael Vieira 
Wladymir Soares de Brito Filho 


No último dia 17/01/2021, a diretoria colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, aprovou, por unanimidade, a autorização temporária de uso emergencial da vacina CoronaVac, desenvolvida pela farmacêutica Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, e da vacina Covishield, produzida pela farmacêutica Serum Institute of India, em parceria com a AstraZeneca/Universidade de Oxford/Fiocruz.

Apesar desta excelente notícia, que expressa o cuidado de Deus – ou, como veem muitas tradições teológicas – a graça comum concedida a toda a humanidade, neste episódio exemplificada pela inteligência e competência de todos os seres humanos responsáveis por esta importante conquista, muitos cristãos têm adotado uma postura de que fazer uso das vacinas seria um sinal de “falta de fé”. Para estes, confiar na medicina humana seria desconfiar da soberania divina em proteger o seu povo das doenças e calamidades deste mundo.

Para abordar esta delicada, complexa e urgente situação à luz das Escrituras, e, por pelo menos duas lentes teológicas, a reformada e a luterana, é preciso trazer novamente aos corações e mentes da igreja brasileira dois elementos da cosmovisão cristã que são extremamente importantes para o dia a dia do povo de Deus nesta Terra: a graça comum, a doutrina da vocação e o respeito às autoridades governamentais.

Segundo o conceito da graça comum, Deus abençoa a humanidade em geral com virtudes e qualidades, independentemente das convicções religiosas e políticas das pessoas (Mateus 5.45). Nas palavras de Wayne Grudem, a graça comum de Deus na esfera intelectual resulta na capacidade dos seres humanos, crentes ou descrentes, de captar a verdade e distingui-la do erro, experimentando crescimento em conhecimento que pode ser usado na investigação do universo e na tarefa de dominar a Terra. Isso significa que toda ciência e tecnologia desenvolvida pela humanidade é resultado da graça comum de Deus, permitindo-lhes fazer descobertas e invenções dignas de nota.

Para facilitar a compreensão, vamos fazer uso de uma “parábola” certamente já conhecida de todos: certa feita uma pequena cidade foi devastada por uma tremenda enchente, daquelas de inundar tudo e, pela visão do Google Earth, somente se viam os telhados. E a água continuava a subir e a chuva continuava a cair. Nela havia apenas um homem (todos já tinham “escapulido”), que subiu até o telhado e de lá começou a orar pedindo a Deus para que a chuva parasse. Apareceu então uma canoa. O canoeiro gritou: “Venha, se salve!”, mas o homem respondeu: “Não posso! Estou orando e o Senhor vai fazer essa chuva parar!”. A água, contudo, continuou subindo. Apareceu então um barco a motor. Chamaram-no, mas ele deu a mesma resposta. Por fim, apareceu um helicóptero dos Bombeiros. Desceram uma cadeirinha até ele numa corda. Mas ele deu sinal que não ia, porque estava orando para a chuva parar. Aconteceu que a chuva aumentou, o homem foi levado pela correnteza, não sabia nadar e morreu afogado. Logo que chegou ao Céu, já foi brigando com o primeiro que encontrou, que foi São Pedro: “Deus não atendeu à minha oração!” disse ele. São Pedro então respondeu: “Como não atendeu, filho, se Deus lhe mandou a canoa, o barco a motor e até um helicóptero?”

Esta conhecida história serve para ilustrar como Deus “fala na língua dos homens”, valendo-se de pessoas de “carne e osso” para avançar seus propósitos na soberana condução da história. Fruto de uma interpretação profundamente alegórica das Escrituras Sagradas, sobretudo do Antigo Testamento, uma parcela considerável da igreja evangélica brasileira espera que as intervenções de Deus em favor do seu povo sejam sempre sobrenaturais, espetaculares e místicas (elas até podem acontecer). Contudo, o relato das Escrituras mostra Deus agindo em favor de seu povo por meio do imperador Ciro II, ao permitir que os judeus retornassem a sua terra natal (Esdras 1); do imperador Xerxes I, ao tornar sem efeito o édito de extermínio contra os judeus engendrado por Mordecai (Ester); ou mesmo usando a mula do profeta Balaão para abençoar o povo de Deus (Números 22.5-33).

Portanto, sem a pretensão de querer dar ordens ao povo de Deus quanto ao que é certo ou errado, mas com a firme intenção de influenciar uma tomada de decisão que seja mais racional, piedosa e ponderada, nosso propósito é faze-lo refletir, especialmente aqueles que adotam uma postura contrária à vacinação que, ao orarem e conversarem com Deus, considerem se a vacina não é exatamente um destes barquinhos, mandados por Deus, para salvar o homem ilhado pela chuva.

Neste aspecto, Lutero é enfático ao explicar o Primeiro Artigo do Credo Apostólico. Na expressão “Criador do Céu e da Terra” abarca pelo menos dois grandes princípios. O primeiro é que na Criação estão contidas todas as medidas para a preservação da vida, inclusive a racionalidade, a genialidade o espírito criativo e a inteligência humana para a busca do bem de todos, o bem comum. O segundo é que este meio de Seu cuidado e agir se dá justamente através das outras pessoas, que são chamadas (vocacionadas) e dotadas de talentos específicos – no caso, o saber científico, que irá operar em nosso favor. Esta visão da graça comum, seria o equivalente, na tradição teológica luterana, ao que chamam de “bênçãos do Primeiro Artigo”. Deus-em-Cristo ama a humanidade e a preserva.

Esta mesma questão da vacinação e o povo de Deus deve ser abordada, ainda, sob o prisma do testemunho do evangelho na ordem social. Relatos como os de Romanos 13.1-7, 1ª Pedro 2.13-14 e Mateus 22.15-22 mostram como como o cristão, transformado pelo Evangelho de Cristo, deve se comportar em relação às autoridades governamentais legitimamente constituídas, promovendo a justiça de Deus na vida diária.

Paulo, Pedro e Mateus nos ensinam que há um papel secular a ser desempenhado pelas autoridades governamentais legítimas: todos os seres humanos, cristãos ou não, devem obedecer às leis de seu país (se comportar como bons cidadãos), porque não há autoridade legítima que não proceda de Deus e não tenha sido por ele instituída. A autoridade governamental é estabelecida como uma serva de Deus para o bem do povo, tendo como objetivo principal recompensar aqueles que fazem o bem e punir aqueles que praticam o mal, mantendo a ordem na sociedade, como já dizia Martinho Lutero. Por tais razões, somos chamados a honrar as autoridades que Deus estabelece sobre uma nação por dever de consciência, e não por medo de coação.

Como afirma Karl Barth, aquele de quem procede todo o poder e por meio de quem toda autoridade existente é estabelecida é Deus, o Senhor, o Criador e o Redentor, aquele que elege e rejeita. Isso significa dizer que os poderes constituídos são medidos tendo Deus por referência, assim como são todas as coisas humanas, temporais e concretas. Deus é o seu princípio e seu fim, sua justificação e sua condenação, seu “sim” e seu “não”.

Numa aplicação direta destes conceitos, cabe trazer à memória a doutrina reformada da soberania das esferas sociais, cuja origem remonta ao reformador João Calvino (1509-1564) e cuja sistematização se deu pelas mãos do teólogo holandês Abraham Kuyper (1837-1920). Trata-se da noção de que a sociedade é composta por várias esferas independentes, igualitárias e soberanas entre si (como igreja, família, estado, trabalho, arte e ensino). Como afirmava Abraham Kuyper, “não há um único centímetro quadrado, em todos os domínios de nossa existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: É meu!”.

Todas as esferas que compõem a ordem social possuem o mesmo nível de importância e hierarquia entre si, e estão todas debaixo da soberania de Deus, sendo regidas por Ele. Estas dimensões da sociedade humana possuem suas próprias missões, propósitos e responsabilidades diferenciadas, razão pela qual os limites de atuação dentro de cada esfera devem ser respeitados.

Já o pensamento luterano sobre a doutrina da vocação, conforme já dito anteriormente, faz com que atuemos em nossos chamados como verdadeiras “máscaras de Deus”, onde Ele atua através de suas criaturas. E, neste ponto, importante notar a conexão. O “reino da fé” é relativo ao Céu; o “reino do amor” à Terra. Não podem ser confundidos, mas não são desconexos, como diria Gustav Wingren. E arremata: “Toda a obra de Deus é posta em movimento mediante a vocação: ele modifica o mundo e espalha sua misericórdia sobre a humanidade oprimida”.

Diante destas diretrizes para a relação entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus traçadas pela tradição cristã, temos que o cristão tem o dever de, por “amor ao Senhor”, se submeter às autoridades legitimamente constituídas, enquanto estas estiverem “recompensando o bem e punindo o mal”. Dentre estas autoridades estão aquelas responsáveis pelas questões sanitárias, tal como a ANVISA no caso brasileiro.

A fundamentada decisão da autoridade sanitária brasileira atestou, de forma unânime, a segurança e a eficácia das vacinas, debelando desconfianças e incertezas que acompanharam todas as fases de seus processos de desenvolvimento. Há de se respeitar, portanto, a autoridade da ciência e da medicina sobre esta área específica da vida humana. O povo de Deus não pode permitir que ideologias políticas quaisquer, verdadeiras idolatrias modernas conforme o alerta de David Koyzis, contaminem a decisão sanitária quanto ao uso de vacinas.

Portanto, diante de todos os fatos que levaram à autorização temporária de uso emergencial das vacinas CoronaVac e Covishield pela ANVISA no último dia 17/01/2021, é legítimo ao cristão se recusar a ser vacinado? Entendemos que o cristão está autorizado pelas Escrituras a ser desobediente apenas quando o governo comanda o mal, ou seja, apenas quando obedecer à autoridade importa em agir de forma expressamente contrária à Palavra de Deus.

Nas palavras de Franklin Ferreira, quando duas ordens diretas colidem, o cristão tem a liberdade de fazer uma escolha, e esta deve ser feita sem hesitação: ficar do lado de Deus, em vez de obedecer às autoridades que não estejam cumprindo com os seus chamados (Atos 5.29). Assim, quando as autoridades se tornam tiranas ou opressoras, deixam de ser autoridades ordenadas por Deus. Quando os cristãos desobedecem e resistem a elas, não estão resistindo à ordem de Deus.

Feito este alerta, entendemos que não há motivos para enxergar a vacinação como uma decisão da autoridade sanitária que contraria expressamente a vontade de Deus para o seu povo, não havendo, portanto, razões legítimas para que a igreja cristã no Brasil deixe de cumprir a orientação bíblica de obediência.

Concluímos assim que fazer uso das vacinas não é um sinal de “falta de fé”, muito menos de falta de confiança na providência divina, mas um claro sinal da graça comum que Deus, ou do cumprimento firme da ordem natural que estabeleceu no cuidado de uns com os outros através das vocações, em sua maravilhosa bondade e generosidade, derrama sobre toda sua criação, permitindo aos homens a inteligência necessária para desenvolver meios seguros e eficazes para pôr um fim a esta pandemia de Covid-19. Façamos assim a vontade Deus, que é sempre boa, perfeita e agradável.