29 novembro 2020

O Que Significam os Cinco Pontos do Calvinismo? Uma explicação simples da TULIPA

Por Gabriel Reyes-Ordeix

Aproximadamente 100 anos depois da Reforma Protestante ter explodido na Europa, em 1517 ocorreu o Sínodo de Dort na Holanda. A razão para este concílio foi discutir o crescimento de uma doutrina nova e diferente na Igreja Reformada Holandesa: o arminianismo. A agenda da discussão incluiu cinco temas fundamentais: a depravação total do homem, a eleição incondicional, a expiação limitada, a graça irresistível e a perseverança dos santos. No final do Sínodo, Jacó Arminio e seus ensinos haviam sido oficialmente rejeitados pela Igreja.

Destes cinco pontos é que vem o acróstico TULIP (“tulipa” em inglês), que abrange a teologia reformada de uma forma simples e concreta:

T: Depravação Total (Total Depravity)
U: Eleição Incondicional (Unconditional Election)
L: Expiação Limitada (Limited Atonement)
I: Graça Irresistível (Irresistible Grace)
P: Perseverança dos Santos (Perseverance of the Saints)

Estes cinco pontos também são conhecidos como os “cinco pontos do Calvinismo” ou “Doutrinas da Graça”.

A Bíblia, nossa única autoridade

Como cristãos, não nos atemos a nada além da Palavra do Senhor, e somente a Bíblia é a nossa autoridade suprema. É à luz dela que veremos cada um desses pontos. Nós também seremos ajudados por nossos irmãos do cristianismo histórico dos anos 1600. Tanto os Cânones de Dort (1618) quanto a Confissão de Fé de Westminster (1646) falam sobre esses cinco pontos.

Depravação total

Toda a humanidade foi afetada, danificada e distorcida pela entrada do pecado no mundo. Isso não significa que o homem seja tão ruim quanto poderia ser, mas que todos os aspectos de nossa vida são afetados pelo pecado, de modo que estamos mortos em nossas transgressões e pecados (Ef 2.5), e nós mesmos não podemos mudar a nossa situação (Cl 2.13).

Os Cânones de Dort nos dizem: “Portanto, todos os homens são concebidos no pecado, e ao nascer como filhos da ira, incapazes de qualquer bem são ou salvífico, e inclinados ao mal, mortos em pecados e escravos do pecado; e eles não querem e nem podem voltar a Deus, nem corrigir sua natureza corrompida, e nem melhorá-la por si mesmos, sem a graça do Espírito Santo, que é aquele que regenera” (Cânone de Dort, capítulo 3-4, IIL).

As doutrinas do pecado e a depravação total do homem são mais do que bem representadas em ambos os testamentos (cf. Is 53.6; 2 Cr 6.36; Rm 3.9-12; 1Jo 1.8,10; Mc 10.18; Mq 7.2-4; Jr 17.9; Mt 15.19; Gn 6.5, 8.21).

Eleição incondicional

Deus escolhe a quem Ele quer escolher. Este é um dos pontos de maior conflito, entretanto, ele está intimamente ligado ao anterior. Uma vez que estamos mortos — literalmente incapazes de tomar qualquer tipo de decisão para nos ajudar — a única saída da nossa morte espiritual é que Deus nos tire dela (2Tm 1.9). Se realmente cremos que somos maus, não temos o direito de reclamar que Deus exerça Sua graça soberanamente.

A eleição incondicional significa simplesmente que Deus escolhe dar a vida eterna sem ter visto nada de bom nos eleitos. João 15.16 não nos deixa dúvida: “Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros e vos designei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça”; do mesmo modo, vemos muito sobre isso na teologia paulina (cf. Rm 9.15-16; Ef 1.4-5; 1Ts 1.4-5; 2Ts 2.13; 1Co 1.27-29).

Nossos irmãos de 400 anos atrás nos dizem: “Pelo decreto de Deus, para a manifestação de Sua glória, alguns homens e anjos são predestinados à vida eterna; e outros são predestinados à morte eterna” (Confissão de Westminster, Capítulo 3, IV).

Expiação limitada

A morte de Cristo paga por todos os pecados daqueles que foram eleitos. O perdão dos pecados está disponível a todos os pecadores, mas ele só paga o preço por aqueles a quem o Pai predestinou desde a fundação do mundo. Essa doutrina também é conhecida como expiação “específica” ou “particular”.

Além disso, nos escritos de alguns dos grandes reformadores como João Calvino, John Owen e Charles Hodge, vemos: “Suficiente para todos, eficaz para alguns”. A expiação de Cristo é suficiente para que toda a humanidade seja salva (independentemente de crerem ou não), mas é eficiente somente para aqueles que crêem. O sangue de Cristo poderia salvar a todos, se essa fosse a vontade de Deus; mas essa não é a sua vontade. Isso pode ser visto em vários textos (cf. Jo 6.37-40; Ef 1.4; Is 53.11; 2Co 5.21; Jo 10.11-29).

“Porque este foi o conselho absolutamente livre, a vontade misericordiosa e o propósito de Deus Pai: que a virtude vivificadora e salvífica da preciosa morte de Seu Filho se estendesse a todos aqueles que estão predestinados a, e apenas a eles, dar-lhes a fé justificadora, e, por isso mesmo, conduzi-los infalivelmente à salvação” (Cânones de Dort, Capítulo 2, VIII).

Graça irresistível

Ninguém pode negar ou resistir à graça salvadora de Deus. Esta doutrina também é conhecida como um “apelo efetivo”. Quando a graça vem, nunca pode ser rejeitada: sua eficácia é perfeita. Isto significa que se Deus escolheu alguém, não há nenhuma maneira que essa pessoa não será salva. Quem somos nós para dizer ‘não’ ao Senhor?

“Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e somente aqueles, a Ele lhe agrada, em seu tempo, chamar efetivamente por Sua Palavra e o Espírito…” (Confissão de Fé de Westminster, capítulo 10, I).

Este é possivelmente um dos pontos mais esperançosos de toda a teologia cristã: pela sua poderosa graça, nós que fomos escolhidos seremos glorificados (Rm 8.29-30). Do mesmo modo, vemos o poder da graça em toda a Escritura (cf. Jo 6.37,44,65; Rm 11.7; 2Ts 13-14; 1Co 1.9; Gl 1.5).

Perseverança dos Santos

Os escolhidos — os verdadeiramente salvos — perseverarão até o fim. Outra grande e esperançosa verdade! Filipenses 1:6 nos diz: “Estou convencido precisamente disto: que aquele que começou a boa obra em vós a aperfeiçoará até o dia de Cristo Jesus”. Isto não se refere ao chamado “salvar sempre salvo”, que uma vez que somos escolhidos por Deus, podemos viver como quisermos. Pelo contrário, diz-nos que, na soberania de Deus, aqueles que Ele escolheu para a salvação sustentarão aquela confissão de conversão até à sua morte, perseverando na vida de santidade. Estas verdades estão presentes uma e outra vez na Bíblia (cf. Rm 8.35-39; 2Pe 1.10; Jo 10.28,29; 1Jo 3.9; 1Pe 1.5,9).

“Quem Deus aceitou em seu Amado, e que foi efetivamente chamado e santificado pelo seu Espírito, não pode cair completa ou definitivamente do estado de graça, mas deve seguramente perseverar nele até o fim, e serão salvos eternamente… Esta perseverança dos santos não depende do seu livre arbítrio, mas da imutabilidade do decreto de eleição, que brota do amor livre e imutável de Deus Pai” (Confissão de Fé de Westminster, capítulo 17, I, II).

Mais do que Calvinismo

Os cinco pontos não são tanto “calvinistas” como “cristãos”. A TULIP não pretende ser um substituto ou melhoria da teologia bíblica, mas um reflexo dela. Assim como Newton não inventou a lei da gravidade, mas enunciou a lei, Agostinho, Calvino ou Dort não inventaram essas doutrinas. O Senhor decretou esses gloriosos cinco pontos, e somente Ele merece glória para eles.

Explicar o TULIP não é complicado. Podemos ver claramente cada um desses cinco pontos em toda a Bíblia. Lembremo-nos, este não é o “calvinismo”: este é o glorioso evangelho de Jesus:

  1. Nós somos maus
  2. Não fizemos nada de bom para sermos eleitos.
  3. Cristo morreu pelos pecados dos seus
  4. Ninguém pode resistir a graça.
  5. Aqueles que são realmente escolhidos perseverarão até o fim.


Quando todas as coisas se fizerem novas

Por R. C. Sproul

Como pastor e teólogo, tive que pensar sobre muitas questões difíceis ao longo dos anos. Verdade seja dita, no entanto, o problema mais difícil que enfrentei é o problema do sofrimento. Todos nós enfrentamos o sofrimento de alguma forma, e todos nós conhecemos pessoas que viveram vidas tão dolorosas que nos perguntamos como elas puderam prosseguir.

Não quero, jamais, minimizar ou negar a dor que o sofrimento traz. O cristianismo não é um sistema de negação estoica em que fingimos que tudo está bem, mesmo quando estamos enfrentando as piores coisas. Ao mesmo tempo, não ousamos esquecer a esperança cristã de que um dia o sofrimento irá embora para sempre. Quando lidamos com o sofrimento, tendemos a ter o nosso olhar completamente fixo no presente, mas a resposta cristã ao sofrimento, ao mesmo tempo que nos incumbimos em aliviar o sofrimento presente tanto quanto podemos, olha além do presente para o futuro.

A própria essência do secularismo é a tese de que o hic et nunc, o aqui e agora, é tudo o que existe. Não existe um reino eterno. Mas, como cristãos, somos chamados a considerar o presente à luz do eterno. Isso é o que Jesus pregou repetidamente. O que aproveita ao homem se neste tempo e neste lugar ele ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua alma (Lc 9.25)?

A Escritura diz que o fim define o significado do início (Ec 7.8). Só Deus conhece o fim desde o início de forma abrangente, mas em sua Palavra, ele nos dá um vislumbre do fim para o qual estamos caminhando. E se pudermos focalizar nossa atenção no fim, e não apenas no agora e na dor que sentimos aqui, podemos começar a entender nossa dor na perspectiva certa.

Ao revelar o novo céu e a nova terra, Apocalipse 21-22 nos dá um dos vislumbres mais claros do futuro. Deixe-me mencionar alguns.

“Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima” (21.3-4). Quando eu era pequeno, a vida era difícil. Havia um menino em nossa comunidade que era muito maior do que eu e era um valentão. Uma vez ele me bateu e eu corri para casa chorando. E minha mãe estava na cozinha usando seu avental e disse: “Venha aqui”. Eu entrei, e então ela se inclinou e enxugou minhas lágrimas – uma das formas mais ternas de comunicação – com a barra do avental. Quando minha mãe enxugou minhas lágrimas, fiquei realmente consolado e encorajado a voltar à batalha. Mas eu voltaria e, mais cedo ou mais tarde, me machucaria de novo e choraria de novo, e minha mãe teria que enxugar minhas lágrimas novamente. Mas quando Deus enxugar nossas lágrimas, elas nunca mais fluirão, por toda a eternidade. (A menos, é claro, que sejam lágrimas de alegria.)

Essa é a perspectiva eterna. Isso é o fim do começo. No momento vivemos no vale das lágrimas, mas essa situação não é permanente porque Deus enxugará nossas lágrimas.

João também diz: “a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto” (v. 4). Morte, tristeza, choro, dor – tudo isso pertence às coisas anteriores, que passarão. Posso imaginar tendo conversas com você na nova Jerusalém, e você dirá: “Lembra-se daquela época, quando costumávamos nos preocupar com o problema do sofrimento?” E eu direi: “Mal me lembro o que era.”

Então, no versículo 22, lemos sobre outra coisa que não estará lá. Não apenas não haverá tristeza ou morte, mas tampouco haverá templo na Nova Jerusalém do novo céu e nova terra. Mas como pode a nova Jerusalém ser a cidade sagrada sem um templo? Bem, João quer dizer que não haverá construção de templos. Haverá outro tipo de templo, diz João – “o Senhor Deus Todo-Poderoso e o Cordeiro”. O mais belo santuário terrestre deste mundo ficará fora de moda na nova Jerusalém, porque estaremos na presença de Deus e do Cordeiro.

“Nunca mais haverá qualquer maldição” (22.3). Você conhece aquela música “Joy to the World”? Eu amo a linha da música que termina com “até onde a maldição é encontrada”. Quão longe é isso? Nesta escuridão atual, a maldição se estende até o fim da terra – para nossas vidas, para nosso trabalho, para nossos negócios, para nossos relacionamentos. Todos sofrem sob as dores da maldição de um mundo decaído. É por isso que existe um anseio cósmico, onde toda a criação geme juntamente esperando a manifestação dos filhos de Deus, esperando por aquele momento quando a maldição for removida (Rm 8.19). Não haverá ervas daninhas ou joio na nova Jerusalém. A terra não resistirá aos nossos arados porque a maldição não será encontrada. “Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os seus servos o servirão” (Ap 22.3).

E então temos a maior esperança, a promessa mais maravilhosa do Novo Testamento – veremos a face de Deus (v. 4). Em toda a nossa vida podemos nos aproximar do Senhor, sentir sua presença e falar com ele, mas não podemos ver seu rosto. Mas se perseverarmos na dor e no sofrimento deste mundo presente, a visão de Deus nos espera do outro lado. Você pode imaginar isso? Você pode imaginar olhar para a glória revelada de Deus por um segundo? Isso fará com que cada dor que já experimentei neste mundo valha a pena.

“Estas palavras são fiéis e verdadeiras” (v. 6) – não a pomada ou o ópio para entorpecer nossa dor presente, mas a verdade do Deus Todo-Poderoso, que nos fez, que nos conhece, que pelo sofrimento de seu Filho redimiu seu povo. Ele nos garantiu que, se estivermos em Cristo somente pela fé, estaremos destinados à glória, e nada pode descarrilhar esse trem. Portanto, essas coisas anteriores que nos causam tanto sofrimento passarão e ele fará novas todas as coisas.


21 novembro 2020

Apegados à Palavra

Por Rev. Jaidson Araújo 

Uma marca essencial do nosso tempo é a negação da verdade. A máxima que impera é: “cada um tem a sua verdade”. Ao aderirmos, ou aceitarmos que cada um tem sua própria verdade reconhecemos o que também é pressuposto: que a verdade é inalcançável e indiscernível. O “espírito” do nosso tempo é desapegado de qualquer padrão, seja ético, moral ou cultural. A forma de ser do nosso tempo valoriza tudo o que é minoritário, periférico, amoral, impróprio etc. Esse perfil já fora antecipadamente denunciado pelo apóstolo Paulo em 2Tm 4.4, nessa passagem Timóteo é alertado que nos últimos tempos as pessoas não suportariam a verdade, e a recusariam.

Na contramão dessa forma de ser e pensar está a postura cristã. O mesmo apóstolo instruindo a Tito quanto àqueles que deveriam liderar e ser modelo para os cristãos, os presbíteros; Paulo destaca as qualidades de caráter que deveria ser evidenciada pela vida de um presbítero, e, dentre elas sobressai a de ser apegado à Palavra (Tt 1.9). Esta marca deveria ser visível na vida do presbítero, que deveria ser modelo para o rebanho.

Quando pensamos em alguém apegado à Palavra, segundo a Bíblia, somos remetidos à maior expressão de apego à Palavra da Escritura Sagrada, o Salmo 119. O Salmo 119 é a mais completa e exuberante expressão de apego e admiração à Palavra. O poema sapiencial, organizado meticulosamente em 22 parágrafos de 8 versículos, dispostos conforme a ordem do alfabeto hebraico, concentra-se em demonstrar suas convicções, sentimentos e atitudes acerca da Palavra de Deus, do Mandamento, dos Preceitos, do Conselho, dos Decretos, os Testemunhos, a Lei.

O autor do Salmo 119 não nega suas convicções quanto à Palavra. Ele nutre em seu coração que o que tudo o que a palavra de Deus ensina é a VERDADE que ilumina o seu entendimento, que dá sabedoria, que conduz à vida. Sem vacilar ele expõe que tudo o que a Palavra de Deus diz é JUSTO, e não somente isso, mas fica evidente em seu poema que ele crer que tudo o que diz a Palavra de Deus é BOM!

As crenças quanto à Palavra despertam sentimentos em sua alma. O salmista alimenta em seu coração AMOR pelo mandamento do Senhor. Não suportava ficar distante da Palavra, pois ela é sua fonte de PRAZER, por isso ele ANELA e DEPENDE do Conselho do Senhor.

Mas, suas convicções não despertavam apenas sentimentos quanto à Palavra, mas também atitudes. Alguém que acredita que a Palavra de Deus é verdadeira, justa e boa, a ama, deseja depende e tem prazer nela, oriente sua vida por ela. É o que vemos no autor do salmo, ele é alguém que CELEBRA a Palavra de Deus, que FALA a Palavra e da Palavra, elas estão continuamente em seus lábios; o salmista ESTUDA a Palavra e a GUARDA NO CORAÇÃO com a disposição de OBEDECER tudo quanto ela o instruir. Existem muitas outras ações do autor em relação à Palavra, mas, por fim, destacamos que ele LOUVA PELA PALAVRA, que é o culminar desse apego.

O Salmo 119 é a expressão de apego à Palavra, de apego à verdade. A leitura deste Salmo nos desafia e nos encoraja a vivermos de modo apegado a Palavra nesse tempo de desapego. Esta leitura nos encoraja a amarmos e dependermos da Verdade, a Palavra de Deus. Esse poema de sabedoria nos encoraja a agirmos com coerência: se pela Palavra conhecemos a Salvação de Deus, e Ela nos instrui quanto ao modo de vivermos que agrada ao nosso Salvador, APEGUEMO-NOS À PALAVRA.

Contrariando o nosso tempo, onde cada um tem sua própria verdade e vive orientado pelo padrão do seu próprio entendimento, eu gostaria de te desafiar – você que foi alcançado e transformado pela Palavra, a buscar fora de você, a buscar na Palavra, a verdade para orientar sua vida, seus valores, suas crenças, convicções, relacionamentos, gostos, sonhos, toda sua vida.

Por fim, gostaria de estimulá-lo a ler este salmo, verificar as afirmações aqui feitas, e deleitar-se na Palavra de Deus.

Fonte: boletim da Primeira Igreja Presbiteriana do Recife, 22/11/2020.


14 novembro 2020

A Atualidade da Palavra de Deus

Por Tiago Santos 

A palavra “ética” vem do grego “ethos” e significa “caráter” ou, ainda, modo de ser. Significa, basicamente, o conjunto de valores morais que guiam o indivíduo em relação ao seu próximo. A moral, por sua vez representa os valores e costumes pelos quais uma sociedade se pauta.

A ética é matéria de grande importância nas ciências humanas pois é o que dá viabilidade ao convívio em sociedade, mas, via de regra, disciplinas que se pautam por uma ética mais secularista, isto é, que não reconhecem sua origem em Deus – mas como parte de um desenvolvimento social, terão como resultado um tipo de ética meramente descritiva, imanente, relativa, subjetiva, mutável e, por vezes, utilitarista.

Uma boa maneira de verificar como anda a ética numa dada sociedade é olhando suas leis. Normalmente, os costumes e leis que regem a vida social refletem a moral daquela comunidade e apontam para a volatilidade de sua ética coletiva.

No caso do Brasil, o Código Penal Brasileiro ajuda a ilustrar esta volatilidade: Até 1977, por exemplo, não existia divórcio na legislação brasileira. O sujeito separava e desquitava, mas não podia contrair novo matrimônio – isto é resultado de uma visão mais robusta (e até sacramental) do casamento, com base na teologia católico-romana. Mas podemos pensar em exemplos mais recentes, como a Lei 11.106 de 2005 que revogou os seguintes crimes contra o costume: 

  • a) Art 217) Sedução de mulher virgem, menor de 18 anos e maior de 14 “sedução que aproveita-se de sua inexperiência e justificável confiança”.
  • b) (Art 219) Rapto de mulher honesta mediante fraude.
  • c) (Art 240) Cometer adultério.
A supressão desses artigos é uma evidência da mudança de valores que não mais reconhece, no século 21, apenas 60 anos depois da promulgação do código (que é da década de 1940) o adultério como uma violação do casamento ou as figuras da “jovem inexperiente” e da “mulher honesta”.

Embora a ética seja tema de estudo e valor para várias disciplinas, como a filosofia, a sociologia, o direito, a psicologia, a política, dentre outras, a ética é também o ponto vital e mais determinante da Teologia.

Ética é matéria teológica e todo cristão deve entender isso. A maneira como ele vive é resultado de sua teologia. Sendo chamado por Deus para viver neste mundo mas refletir os valores do Céu, revelados por Deus nas Escrituras, o cristão rapidamente se vê diante de grandes dilemas, pois os valores do presente século estão muito distantes dos valores de Deus. Contudo, tendo o dever de ser “luz do mundo e sal da terra”, o cristão não pode viver isolado em algum tipo de subcultura ou “bolha eclesiástica”. Ele precisará ser capaz de articular os valores da Palavra de Deus no mundo em que está. Por esta razão, expressa opiniões tais como: ser contrário ao aborto, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e a conduta homossexual, ou ainda a afirmação de que o núcleo familiar é monogâmico e heterossexual, dentre outros valores basilares das Escrituras.

Mas é preciso que o cristão moderno seja capaz de oferecer fundamento e solidez para as posições que expressa. C. S. Lewis, em um discurso para jovens anglicanos do país de Gales, em 1945, disse que: “Cada um de nós possui várias opiniões que parecem consistentes com a fé, verdadeiras e importantes. E talvez sejam. Mas nosso papel é defender o cristianismo (não nossa opinião). Temos de fazer a diferença entre a opinião pessoal e a Fé. O apóstolo Paulo fez isso em 1Co 7.25. (…). A maior dificuldade é levar os ouvintes modernos a entender que você prega o cristianismo porque acredita que ele é verdadeiro. Eles sempre supõem que você prega porque gosta da mensagem, acha que ele é boa para a sociedade. Bem, a distinção clara entre o que a Fé afirma e o que você gostaria que ela dissesse, ou o que você entende ou considera útil, força os ouvintes a entender que você está preso a seus dados, exatamente como o cientista é limitado pelo resultado da experiência. Você não diz apenas aquilo que gosta. Isto os ajuda a entender que o que está em discussão é uma questão sobre fato objetivo – não conversa vazia sobre ideias ou opiniões.” (C. S. Lewis, Ética para viver melhor: diferentes atitudes para agir corretamente. São Paulo, SP, Editora Planeta, 2018. Pg. 95).

Mas a Palavra de Deus e a ética cristã que esta ensina é a fonte definitiva da sabedoria de Deus para um mundo em crise. Os problemas enfrentados pelo homem são sanados pela Palavra.

Por isso o cristão deve ser capaz de articular os fundamentos de sua posição da ética bíblica e demonstrar que esta é a única e mais firme verdade pela qual o ser humano deve viver – um fato objetivo – ao tempo em que demonstra a fragilidade do sistema ético secular.

A ética cristã, se apresenta como tendo origem em um Deus pessoal e criador do universo, que se revelou ao homem e comunicou seu caráter a ele, sendo, portanto, revelada, transcendente, absoluta, normativa, objetiva, imutável e deontológica (isto é, uma ética do ser, independente dos resultados).

Enquanto “modus vivendi” estabelecido por Deus na criação, é dever de todo ser humano.

Na criação, Deus estabeleceu critérios pelos quais o homem deveria viver (Gn 1-3). O núcleo de toda vontade de Deus para todas as esferas da vida foi descortinado ao homem tanto no “imago Dei” como no pacto que Deus faz com o home na criação, de modo que Deus orienta o homem em todas as áreas da vida humana: a família, o trabalho, a cultura, a espiritualidade, enfim foram todos idealizados num mundo pré-queda e determinados por Deus como norma para a humanidade. A queda alienou o homem de Deus e seu efeito devastador na alma humana poluiu seu coração, incapacitando-o para cumprir a vontade de Deus. Mas Deus se manifestou em graça e chamou o homem a uma nova relação com ele, pela redenção prometida no Messias.

Assim, embora a ética cristã seja obrigação de todo homem, esta só pode ser verdadeiramente perseguida e aplicada por aqueles que forem convertidos a Deus pelo poder do Espírito no Evangelho, passando a desejar viver para agradar a Deus e fazer a vontade dele. Nesse sentido, sua aplicabilidade imediata será para os cristãos. Isso porque os cristãos são capacitados pelo Espírito de Deus para viver uma vida de obediência e debaixo do Senhorio de Cristo.

A ética cristã, ainda mais, procura discutir e definir questões fundamentais como o verdadeiro significado e propósito da vida humana, quem é o homem, qual é a natureza do homem, como deve ser o homem, o que é verdade, justiça e retidão, o que é moralmente certo e errado, o que é uma vida correta, como devem ser os relacionamentos interpessoais do homem, qual a posição do homem diante do seu Criador e diante do seu Salvador, Jesus Cristo, quais são as implicações do senso de dever, de obrigação moral do homem para com Deus e seu próximo. A tarefa da ética cristã é encontrar um critério objetivo para determinar qual é o bem com o qual o homem, como ser moral, deve se conformar – neste caso, a imagem e estatura daquele que viveu plenamente os valores da ética Cristã expressos na lei moral, Jesus Cristo.

Nos Dez Mandamentos, encontramos a expressão máxima da lei moral de Deus e a revelação objetiva de como Deus quer que os homens vivam. Esta lei moral de Deus está presente em toda manifestação revelatória de Deus: nas leis civis, nas leis sanitárias, nas leis cerimoniais, nos preceitos, nos estatutos e até mesmo nas revelações proféticas extraordinárias, todavia, no Decálogo, temos a expressão suma da vontade de Deus para o homem.

No decálogo, portanto, encontramos o que Hans Heifler chamou de “moldura da ética cristã”. Pode se dizer que é uma “bússola” para o cristão, pois embora não haja instrução específica sobre como agir em cada diferente dilema e situação da vida – pois não se ocupa da casuística –nessas dez palavras é possível encontrar todo o princípio que haverá de nortear a vida do cristão. Martinho Lutero refere-se aos dez mandamentos como o modelo, a fonte e o canal pelo qual o cristão viverá.

Esses 10 Mandamentos, em sua forma tradicional abrangem um código duplo de deveres religiosos (Êx 20.3-12) e sociais (Êx 20.13-17) embora submeta as duas áreas (adoração, a proibição dos ídolos, o juramento, o dia sagrado e a piedade filial, de um lado; e a santidade de vida, casamento, das posses, da verdade e do desejo, do outro lado) à autoridade divina direta. Os mandamentos também são dados de forma negativa, mas, em cada um deles há um núcleo de valores positivos sendo defendidos. Quando estudamos os mandamentos, fazemos bem em compreender ambos os polos – aquele mais evidente, que proíbe-nos de certa conduta (isso é bem didático e fala bem sobre nossa condição humana caída) e aquele positivo, que está implícito na forma afirmativa do mandamento. Esse é o bem que Deus protege, que Deus tutela.

Na ética no novo testamento – tanto no ensino de Jesus nas bem aventuranças como nos casos mais específicos trabalhados pelos apóstolos Paulo, Pedro, João, Tiago em suas epístolas (ao tratar de questões tais como pureza, fraternidade, bondade, etc; questões de trabalho, família, governo, etc) o que vemos são a aplicação ou mesmo a interpretação – ou ainda, ampliação dos princípios morais havidos nos dez mandamentos. O ensino ético do Novo Testamento, portanto, não cria uma dicotomia entre lei e graça. Do contrário, o apóstolo Paulo ensina que a lei era expressão da graça, pois revela a condição perdida do homem e estabelece o modelo pelo qual aquele que foi justificado pela graça viverá. Para Paulo, a lei era santa, justa, espiritual e boa (Rm 7.12, 14, 16). É o próprio Espírito de Deus que habilita o cristão amar, seguir e obedecer a Deus em seus mandamentos.

Esta foi a razão porque, na Reforma do século XVI encabeçada por Martinho Lutero, o Decálogo foi tão realçado e usado, inclusive, como fundamento dos catecismos que ensinavam os caminhos básicos da vida cristão piedosa, com o Catecismo Maior de Lutero. Os reformadores, acompanhando Lutero, foram muito perspicazes em perceber isso. O reformador francês João Calvino inseriu uma seção inteira de comentário ao Decálogo em suas Institutas e disse que o decálogo é a “única regra de vida perpétua e inflexível”. Ele reconhecia o valor do decálogo porque via nele o direito de Deus legislar, os valores de Deus revelados na legislação dada, seu padrão elevado e perfeito de justiça e nossa incapacidade de satisfazer as exigências de sua justiça, tendo necessidade de um justificador mais justo do que nós. Uma vez tendo recebido esta justiça, o Espírito de Deus então inscreve essa lei em no coração da pessoa redimida e esta passa a desejar obedecer a Lei para honrar, adorar e louvar o Deus criador e legislador que, por graça, salvou homens e mulheres para que possam viver uma vida justa e santa, “coram Deo” – diante de Deus.

Enfim, a Lei de Deus define, guia e ilumina a vida humana e fornece ao cristão segurança para afirmar os valores de Deus como sendo a bússola moral para dar sentido e direção ao ser humano em todas as áreas da vida.

Só a lei imutável, objetiva, santa e bela de Deus é que pode dar sentido e direção a este mundo caído. O fundamento das posições cristãs é a verdade objetiva das Escrituras e o exemplo de vida conduzida pela fé, arrependimento e humildade. É assim que o cristão será sal e luz neste mundo.



02 novembro 2020

A Doutrina Reformada acerca da Revelação

Por Paulo R. B. Anglada 

Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência manifestam de tal modo a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, todavia não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade, necessário à salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto torna a Escritura Sagrada indispensável, tendo cessado aqueles antigos modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo (Confissão de Fé de Westminster, 1:1)


O primeiro capítulo da Confissão de Fé de Westminster começa tratando da bibliologia, a doutrina das Escrituras. Isto é apropriado. Não porque a doutrina das Escrituras seja mais importante do que outras doutrinas, como a pessoa e obra de Deus (a teologia propriamente dita) e de Cristo (a cristologia). Mas porque a doutrina das Escrituras é a base, a fonte de todas as demais doutrinas.

Com o princípio reformado resumido na expressão latina sola Scriptura, os reformadores rejeitaram a autoridade das tradições eclesiásticas e das supostas novas revelações do Espírito. E restabele­ceram as Escrituras como única regra de fé e prática, como única fonte autoritativa em matéria de doutrina e prática eclesiástica.

DIVISÃO DO ASSUNTO 

As seguintes doutrinas são tratadas neste capítulo da Confissão de Fé:

  • Doutrina da Revelação (parágrafo I)
  • O Cânon e a Inspiração das Escrituras (parágrafos II e III)
  • Autoridade das Escrituras (parágrafos IV e V)
  • Suficiência das Escrituras (parágrafo VI)
  • Clareza das Escrituras (parágrafo VII)
  • Preservação e Tradução das Escrituras (parágrafo VIII)
  • Interpretação das Escrituras (parágrafo IX)
  • O Juiz Supremo das Controvérsias Religiosas (parágrafo X)

REVELAÇÃO NATURAL 

A Confissão de Fé de Westminster começa professando a doutrina da revelação natural: Deus se revela por meio das obras que foram criadas e da própria consciência do homem, na qual está impregnado um padrão moral, ainda que imperfeito por causa da queda.

Biblicamente falando, o universo físico é uma pregação. O cosmos proclama os atributos de Deus. O macrocosmos (as estrelas, os planetas, os satélites, com sua imensidão, grandeza e leis), o cosmos (a terra, os mares, as montanhas, os vegetais, os animais, o homem), e o microcosmos (os microorganismos, a constituição dos elementos, etc.) revelam muita coisa a respeito da pessoa e da obra de Deus. O Autor de tal obra tem de ser infinitamente sábio e poderoso.

O próprio ser humano, como criatura de Deus, independente­mente do aprendizado, já nasce com uma consciência, uma versão da lei de Deus impregnada no seu ser que o habilita a discernir entre o bem e o mal e com um instinto que o induz à adoração da divindade. Este é o ensino bíblico do Antigo e do Novo Testamento:

Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo (Sl 19:1-4).
Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas (Rm 1:19-20).
Quando, pois, os gentios que não têm lei procedem por natureza de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada nos seus corações, testemunhando-lhes também a consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se (Rm 2:14-15).


Ao estudar a criação, o homem deveria procurar ver Deus nela, pois é obra dele, e revelam os seus atributos. As ciências podem até ser consideradas departamentos da teologia, especializações que estudam a criação e a providência. O estudo da química, da física, da matemática, da biologia, da geografia, da política, da antropologia, da história, etc., deve ter por fim último a glória de Deus. Não é sem razão que muitos dos primeiros cientistas dignos do nome eram cristãos sinceros, como Isaac Newton e Faraday.

Ao se estudar a criação, em qualquer esfera, deveria se descobrir nela as mãos de Deus e as mãos do diabo. Por um lado, observa-se nela impressionante e substancial lógica, ordem, harmonia, sabedoria e poder. Por outro lado, pode-se também perceber na natureza os traços da corrupção, desordem, conflito e degeneração decorrentes da queda. Mas a educação do nosso século, especialmente no nosso país, embora, em geral, reivindique ser cristã, tornou-se na verdade materialista. Onde, nas escolas e universidades, essas disciplinas são estudadas com essa perspectiva e com esse propósito?!

A CULPA HUMANA 

Se o homem não houvesse caído, a revelação natural seria suficiente para que ele compreendesse as verdades com relação a Deus, à criação, ao próprio homem, etc.; de modo a submeter-se a Deus e a adorá-lo, rendendo-lhe a graça, o louvor e a honra que lhe são devidas.

Mesmo caído, a revelação natural ainda é suficiente para torná-lo indesculpável, pois o homem natural deturpa a revelação natural. Ele não dá ouvidos à pregação da natureza que o convida a glorificar a Deus. Ele não se submete à proclamação do cosmo, nem reconhece a origem divina das leis que regem o universo. O homem natural também não se submete às leis da sua própria consciência, transgredindo-as constante e deliberadamente. Recusando-se rebeldemente a reconhecer a soberania do Criador e a adorá-lo, o homem natural prefere adorar a criatura.

Tais homens são por isso indesculpáveis; porquanto tendo conhecimento de Deus não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos, e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis... pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém (Rm 1:21-23, 25).


Este diagnóstico é igualmente verdadeiro, quer aplicado à filosofia dos sofistas, epicureus e gnósticos da Grécia Antiga, quer aplicado ao humanismo renascentista, quer aplicado à ciência materia­lista moderna. Onde, insisto, nas escolas e universidades de nosso país, estuda-se a criação pela perspectiva das Escrituras e com o propósito de glorificar a Deus?

O homem natural confunde o Criador com a criação (e crê no panteísmo), isola o Criador da criação (e prega o deísmo), rejeita o Criador (e professa o materialismo), ou dá-se por satisfeito com a criação (dando origem ao naturalismo). Na sua louca cegueira, o homem natural rebelde vai além: ele prefere atribuir os traços de corrupção, desordem e conflito percebidos na criação ao Criador, e explicar a substancial lógica, ordem, harmonia, sabedoria e poder nela percebidos às forças cegas da natureza, à evolução natural, à seleção natural, ou mesmo a mutações genéticas.

Por isso o homem é indesculpável. Por isso é justamente culpado: por se recusar a andar conforme o grau da revelação que recebe, seja da natureza, seja da consciência, e se entregar rebelde e arrogan­temente a todo tipo de impiedade. “Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem” (Rm 1:32).

INSUFICIÊNCIA DA REVELAÇÃO NATURAL 

A revelação natural é, portanto, suficiente para condenar, mas não para salvar. Devido ao estado decaído do homem, a revelação natural não é nem clara nem suficiente para que as verdades necessá­rias à sua salvação sejam compreendidas.

A religião natural ensina que a revelação da natureza é suficiente para a salvação do homem. Para os que assim pensam, a mente humana desassistida pode compreender tudo o que é necessário à salvação. Mas tal ensino contradiz frontalmente a revelação bíblica. De acordo com as Escrituras, “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente” (1 Co 2:14). Segundo as Escrituras, “aprouve a Deus salvar aos que crêem, pela loucura da pregação” (1 Co 1:21). É por isso que o apóstolo Paulo exclama: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em que não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?” (Rm 10:13-14). Qual a conclusão? “Logo, a fé vem pela pregação (pelo ouvir) e a pregação (o ouvir), pela palavra de Cristo” (Rm 10:17).

Deus se revela na criação, sim. Esta revelação é suficiente para tornar a raça humana indesculpável. Mas, por causa da queda, não é suficiente para a salvação de ninguém.

REVELAÇÃO ESPECIAL 

Não sendo a revelação natural suficiente para salvar o homem em função da queda, aprouve a Deus revelar-se diretamente à igreja.

Assim, Deus preparou um povo, Israel, na Antiga Aliança, e a Igreja, na Nova Aliança, para revelar-lhe diretamente o conhecimento necessário à salvação. De modo direto e sobrenatural, por meio do seu Espírito, através de revelação direta, teofanias, anjos, sonhos, visões, pela inspiração de pessoas escolhidas e pelo seu próprio Filho, Deus comunicou progressivamente à igreja, no curso dos séculos, as verda­des necessárias à salvação, as quais, de outro modo, seriam inaces­sí­veis ao homem.

Foi assim que Deus revelou-se a Noé, a Abraão, a Moisés, aos profetas, a Davi, a Salomão, aos seus apóstolos e, especialmente, em Cristo. É neste sentido que o autor da Epístola aos Hebreus afirma que, “Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hb 1:1-2). Cristo é a revelação final de Deus.

É este também o sentido das palavras do apóstolo Paulo endereçada aos gálatas: “Faço-vos, porém, saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem; porque eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo” (Gl 1:11-12).

À igreja de Deus, portanto, foram confiados os oráculos de Deus, uma revelação especial, inspirada, clara, precisa, autoritativa, suficiente para ensinar ao homem o que ele deve conhecer e crer e o que dele é requerido, com vistas à sua própria salvação e à glória de Deus.

REVELAÇÃO ESCRITA 

Tendo em vista a insuficiência da revelação natural e a absoluta necessidade da revelação especial, aprouve a Deus ordenar que esta revelação fosse toda escrita, a fim de que pudesse ser preservada e permanecesse disponível, para a consecução dos seus propósitos eternos. Deus conhece perfeitamente a natureza humana corrompida. Ele conhece também a malícia de Satanás, bem como a perversão do mundo. Ele sabe que revelar a sua vontade à igreja não seria suficiente, pois seria fatalmente corrompida e deturpada. Basta observar as tradições religiosas, mesmo as ditas cristãs; como tendem inexoravel­mente para o erro!

Por isso Deus fez com que todas as verdades necessárias à salvação, santificação, culto, serviço e vida do homem, fossem escritas e preservadas, para que pudessem ser conhecidas, cridas e obedecidas. Com este propósito, o próprio Deus, por meio do seu Espírito, inspirou os autores bíblicos, a fim de que pudessem escrever a revelação especial, sem erro algum.

Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra (2 Tm 3:16).
Temos assim tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vossos corações; sabendo, primeira­mente, isto, que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana, entretanto homens santos falaram da parte de Deus movidos pelo Espírito Santo (2 Pe 1:19-21).

De acordo com este parágrafo da Confissão, portanto, a revelação escrita é expressão da graça de Deus com vistas à preser­vação da integridade da verdadeira religião e à salvação, edificação e conforto do seu povo.

NECESSIDADE DAS ESCRITURAS 

Sendo a Palavra escrita o meio escolhido por Deus para revelar a sua vontade ao homem, ela não pode ser dispensada, igualada, acrescentada nem suplantada. Nem o Espírito agiria em detrimento ou à parte dela, mas com e por ela. É neste sentido que as Escrituras são necessárias e indispensáveis para a comunicação das verdades necessárias à salvação. A Igreja Católica têm a tradição oral. Os reformadores radicais tinham a palavra interior. Outras denominações modernas têm novas revelações do “Espírito.” A fé reformada se fundamenta inteiramente nas Escrituras.

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Fonte: Extraído de Paulo R. B. Anglada, Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras (São Paulo: Editora Os Puritanos, 1998), 25-31.