31 outubro 2020

A Reforma e o "Sola Scriptura"

Por Augustus Nicodemus Lopes 

Hoje é o aniversário da Reforma Protestante. Seria bom lembrar um dos seus pilares, o conceito de Sola Scriptura, “Somente a Escritura”.

Se quisermos achar um evento que sirva como marco histórico para a origem do conceito, a resposta de Lutero na Dieta de Worms (1521) imediatamente vem à mente. Ao ser perguntado, pela segunda vez, se iria se retratar de suas posições expressas nas 95 teses, ele respondeu: 

“A menos que eu seja convencido pelas Escrituras e pela razão pura e já que não aceito a autoridade do papa e dos concílios, pois eles se contradizem mutuamente, minha consciência é cativa da Palavra de Deus. Eu não posso e não vou me retratar de nada, pois não é seguro nem certo ir contra a consciência. Deus me ajude. Amém.”

Em outras palavras, Lutero declarou que só aceitaria o que pudesse ser provado pelas Escrituras: “Sola Scriptura”

Aceitando somente a Escritura, Lutero deduziu que a salvação era somente pela graça (sola gratia), somente pela fé (sola fide) na pessoa e obra de Cristo (solus Christus), redundando em glória somente a Deus (soli Deo gloria), divergindo, assim, do que era ensinado na sua época e que era baseado na tradição, bulas e declarações de concílios. Como a venda de indulgências, por exemplo. Em outras palavras, o conceito de sola Scriptura é fundamental para o edifício da teologia da Reforma.

Mas, esclareçamos. Como cristão reformado, quando eu uso a expressão Sola Scriptura não estou negando que a Palavra de Deus, a princípio, foi transmitida oralmente, antes de ser escriturada. Também não estou negando que Deus se revelou à humanidade na natureza, por meio das coisas criadas (revelação geral, embora não salvífica) e nem estou reduzindo a atividade do Espírito Santo nos crentes ao momento de leitura da Bíblia. Nem nego a necessidade de pastores, mestres e evangelistas. Eu também não estou dizendo que a Bíblia é sempre clara em todas as suas partes e menos ainda que ela é exaustiva.

Quando os cristãos reformados declaram “Sola Scriptura!” eles estão dizendo fundamentalmente que a palavra que Deus falou através dos séculos através de pessoas que ele escolheu e inspirou, na qual Ele se revelou e revelou sua vontade para seu povo, se encontra agora somente nas Escrituras Sagradas, e em nenhum outro lugar. 

Esta revelação escrita é suficientemente clara em matérias pertinentes à salvação e santificação do povo de Deus e suficiente para que se conheça a Deus e a sua vontade.

Em outras palavras, Sola Scriptura significa que a única regra de fé e prática para os cristãos são as Escrituras Sagradas do Antigo e do Novo Testamento, pela simples razão de que elas, e somente elas, são inspiradas por Deus. A tradição oral, os pronunciamentos dos concílios e líderes religiosos e as opiniões de teólogos não são. Eles podem ser úteis em nossa compreensão das Escrituras e das origens do Cristianismo, bem como nas aplicações de seus princípios às questões de nossos dias, quando não contradizem as Escrituras. Contudo, nenhum deles é a base e o fundamento para minha fé e as minhas práticas. 

Assim, eu não tenho nenhum problema em aceitar uma tradição oral desde que se possa demonstrar que ela tem origem no ensino dos apóstolos. Da mesma forma, aceito os ensinos dos Pais da Igreja que comprovadamente estão de acordo com os escritos do Novo Testamento.

Da mesma maneira, “revelações” e “profecias” que pretendem adicionar alguma coisa à Escritura, ou que a contradizem, são, como disse Jeremias, meros sonhos e ilusões de profetas que não têm o Espírito de Deus (Jer 23:9-40), pois “o testemunho de Jesus é o espírito da profecia” (Ap 19.10).

É claro que não vamos encontrar o slogan Sola Scriptura na Bíblia, pelo menos não como uma frase ou declaração. Mas existem evidências claras o suficiente para aceitarmos que, ao dizer que sua consciência estava cativa somente à palavra de Deus, Lutero estava expressando um princípio amplamente exposto nas Escrituras. 

Para quem quiser depois consulta-los, acredito que os textos abaixo deixam claro que já há nas próprias Escrituras uma compreensão de que elas são inspiradas por Deus e que nelas Deus fala de maneira autoritativa e suficiente para seu povo: 

Jo 5.24; Jo 20.30-31; 2Pe 1.20-21; 2Tm 3.14-17; 1Co 14.37-38; 1Ts 4.8; 2Ts 3.14; 2Pe 3.15-16; Sl 19.7-9; Is 8.19-20; Jo 10.35; Rm 15.4; Hb 4.12; Ap. 22.18-19.

Há outras, mas estas bastam para mostrar que: (1) há uma clara consciência do conceito de Escritura como sendo o meio pelo qual Deus fala; (2) as Escrituras são consideradas, portanto, como a autoridade final nas coisas concernentes a Deus e nossa relação com ele e com os outros; (3) que nenhuma outra fonte de autoridade pode ser colocada ao lado das Escrituras.

É em passagens assim que os cristãos reformados se baseiam para dizer que é somente nas Escrituras que Deus nos fala de maneira autoritativa e final. E portanto, nossa consciência está cativa somente a elas. 

Enfim, Sola Scriptura.

Fonte: Facebook

28 outubro 2020

Falsos Mestres, um “Câncer” Dentro da Igreja

Por Vilmar Rodrigues Nascimento 

Zelo espiritual é uma qualidade indispensável ao verdadeiro pregador da Palavra de Deus. No entanto, esse mesmo zelo tem sido usado por falsos mestres moralistas e farisaicos com fins espúrios. É por isso que os falsos líderes são tão amados e admirados. Eles exercem suas funções eclesiásticas levantando a bandeira do zelo pelas coisas sagradas, quando na verdade, são lobos vorazes em pele de cordeiros. 

A história bíblica, eclesiástica e teológica é prova contundente que muitos hereges foram grandemente estimados por suas pregações e ensinos moralistas. Louis Berkhof escreveu sobre o herege Márcion nestes termos:

“Homem de zelo profundo e de grande habilidade, que labutava no espírito de um reformador. A princípio procurou sujeitar a Igreja à sua maneira de pensar, mas não conseguindo êxito em sua obra reformista, sentiu–se constrangido a organizar seus seguidores numa Igreja separada, buscando aceitação universal para seus pontos de vista através de ativa propaganda” (A História das Doutrinas Cristãs. Editora: PES. Pg. 49).


Márcion ensinava uma distinção absoluta entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento. Para ele, o Deus do AT não era o mesmo do NT. Entendia a matéria como má, portanto, negava a encarnação de Cristo. O apóstolo João em sua primeira Carta à Igreja escreveu alertando tal fenômeno:

“Filhinhos, é já a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo, também agora muitos se têm feitos anticristos, por onde conhecemos que é já a última hora. Saíram de nós, mas não eram de nós; porque, se fossem de nós, ficariam conosco; mas isto é para que se manifestasse que não são todos de nós” (1 Jo 2.18, 19).


Muitos blasfemadores saíram da Igreja ao serem confrontados e combatidos pelos apologetas. Outros, porém, ficaram disseminando seus erros doutrinários travestidos de zelo espiritual. Os falsos líderes eram e continuam sendo amados porque seus ensinos culminam em práticas pecaminosas que se adéquam ao gosto e interesses de seus ávidos ouvintes. Nesse contexto, como “serpentes”, os falsos mestres continuam tentando muitos membros da Igreja, que atraídos pelos seus discursos arrebatadores são seduzidos e atacados com “veneno” mortal: a heresia.

Todos os falsos mestres receberão no porvir o justo juízo de Deus e Sua implacável ira, castigando-os eternamente em todos os seus pecados.

Nos dias atuais os falsos líderes continuam sendo amados e admirados, mas com uma grande diferença: a mídia. Os holofotes em torno deles têm potencializado não só o amor e admiração, mas terrivelmente a veneração e idolatria de seus seguidores. Qual o principal fundamento para tanto "sucesso"? O amor e o prazer ao pecado travestido de falsa piedade, zelo e moralismo. Acontece assim: Os falsos líderes injetam “veneno” através dos falsos ensinos em seus seguidores e seus seguidores tornam-se um com eles e, ao mesmo tempo, dependentes deles, ao ponto de precisarem de mais “veneno” e mais “veneno”... O resultado é mais amor ao pecado e mais prazer em pecar. Esse ciclo é mortal. O “veneno” injetado mata. Os sintomas do “câncer” são bem vistos no estilo de vida dos falsos mestres e seus seguidores, eles são: egocêntricos e excêntricos. Idólatras e oportunistas. Avarentos e mundanos. Hedonistas e narcisistas. Tornam-se consumidores insaciáveis. É por isso que Paulo ao exortar os jovens pastores Timóteo e Tito, disse enfaticamente:

“É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo casas inteiras, ensinando o que não devem, por torpe ganância” (Tt 1.11). “Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocações, difamações, suspeitas malignas, altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro” (1 Tm 6.3–5).

Em 1 Tm 1.3–7 o apóstolo Paulo exorta e orienta Timóteo bem como a igreja em Éfeso sobre o dano que os falsos mestres podem fazer ao povo de Deus e a causa de Cristo. No verso 7 está escrito: “Pretendendo passar por mestres da lei, não compreendendo, todavia, nem o que dizem, nem os assuntos sobre os quais fazem ousadas asseverações”. O verbo “pretender” no original grego significa: Querer, ter em mente, desejar muito, estar resolvido. O modo verbal particípio presente deixa claro a ação de continuidade. A voz no original é ativa. Portando, os falsos mestres amam continuamente o que fazem e não abrirão mão por ativamente amarem serem o que são – falsos mestres. O restante do versículo e capítulo é uma conclusão lógica à luz do contexto de toda carta do que são capazes e estão dispostos a fazer.

É importante frisar que Paulo ensina Timóteo e a igreja, que os falsos mestres agem abertamente como se fossem verdadeiros “mestres da lei”. Contudo, eles não sabem “nem o que dizem”, que dirá “os assuntos sobre os quais fazem ousadas asseverações”. O verbo “passar” no original significa: Ser, existir, acontecer. Ele está expressando uma ação contínua e ativa. Conclui-se que os falsos mestres jamais abrirão mão de ensinarem por amarem o que fazem. Eles continuarão ativamente dentro da igreja disseminando implacavelmente seus falsos ensinos e para melhor resultado, passam-se por “mestres da lei”. Ou seja, tais hereges existem e acontecem falsamente no meio protestante como “mestres da lei”. Que “câncer!” Que lástima! Que tragédia!

Paulo deixa claro à igreja que os falsos mestres “fazem ousadas asseverações”. Eis aqui uma forma clássica de ação: Eles são firmes em seus discursos e enfáticos no método de impressão de seus ensinos através de uma impressionante impostação vocálica. Eles almejavam o púlpito sagrado. Amam pregar. O verbo “asseverar” no original significa: Afirmar com ênfase, declarar de forma contundente. Seu sentido no texto é colocado por Paulo como uma certeza contínua. Portanto, os falsos mestres sempre usarão a oratória como método e recurso para atingir seus objetivos. E mais: Paulo usa a voz média no original, significando que eles sempre estarão preocupados com seus próprios interesses: O amor, prazer e entrega ao pecado.

Muitos falsos mestres existiam dentro da igreja em Éfeso. Mas Paulo faz questão imediata de citar dois nominalmente: “Himeneu e Alexandre” (1 Tm 1.20). O apóstolo antes de fazer menção dos nomes, usa o verbo no original “rejeitar” no verso 19: “tendo eles rejeitado a boa consciência, vieram a naufragar na fé”. Esse verbo significa: Expulsar para fora de si mesmo, repulsar. É um particípio no aoristo. O aoristo expressa uma ação realiza e acabada. O sentido fica assim: “Alexandre e Himeneu tendo uma vez rejeitado definitivamente a boa consciência, vieram a naufragar na fé”. A voz média é usada para expressar que o sujeito age em benefício próprio. Significando que os dois tomaram tal decisão visando seus próprios interesses. A convicção de Paulo foi clara e objetiva: “os entreguei a Satanás”. Qual propósito? “para serem castigados, a fim de não mais blasfemarem” (v.20).

A igreja em Éfeso não poderia mais se deixar doutrinar e influenciar pelos falsos mestres. Paulo consciente desta realidade exorta Timóteo bem como a igreja:

“Este é o dever que te encarrego, ó filho Timóteo, segundo as profecias de que antecipadamente foste objeto: combate, firmado nelas, o bom combate, mantendo fé e boa consciência, porquanto alguns tendo rejeitado a boa consciência, vieram a naufragar na fé” (vv.18, 20).


É importante ressaltar que Paulo imediatamente no verso 20 cita Himeneu e Alexandre. Por quê? O próprio contexto da carta deixa claro que esses falsos líderes e sua corja não estavam preocupados com o parecer paulino sobre eles. Eles estavam interessados em disseminar suas heresias a fim de darem vazão aos seus desejos carnais e egoístas. Paulo destaca bem tal motivação aos fiéis no capítulo 6.3–10. No verso 5 está escrito: “... homens cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro”. Aqui há uma grande lição para a igreja em todos os tempos no que concerne à prevenção e combate aos falsos líderes. Paulo faz uma afirmação categórica: os falsos mestres são contínuos em seus objetivos. Portanto, não cabe aos líderes e à igreja serem flexíveis com eles. Eles devem ser implacavelmente combatidos. Por isso que o apóstolo Paulo em nome da saúde da igreja e da glória de Cristo não hesitou em citar nomes. Aqui não houve espaço para o hasteamento da tão famosa bandeira hodierna do politicamente correto! Paulo usou o verbo “supor” que no original significa: manter pelo costume ou uso, considerar. O modo verbal é o genitivo, indicando posse. O tempo verbal expressando continuidade e a voz indicando ação do sujeito. 

Para os primeiros leitores ficou clara a mensagem. Ou seja, os falsos mestres estavam viciados no uso contínuo e ativo da fé religiosa como fonte de lucro. Estavam exercendo grande influência sobre as casas e em especial as mulheres (5.1–16). Agindo assim, perpetuavam sua influência e poder dentro da igreja. Eles almejavam tomar posse completa do púlpito – que é a expressão máxima da verdadeira pregação Cristocêntrica – e o transformar em sua mais elevada tribuna pervertendo–o para os seus mais espúrios e avarentos propósitos. O “câncer” mortal do falso ensino estava se espalhando dentro da igreja em Éfeso (2 Tm 2.17,18). É neste contexto que devemos analisar e entender o famoso versículo: “porque o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males; e alguns, nesta cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores” (v.10).

Os falsos mestres de hoje são bem parecidos com os de ontem. Seus erros e práticas são mais visíveis por força da velocidade da informação e propaganda. Os pecados são os mesmos. Os objetivos são os mesmos. Eles amam e se deleitam no prazer do pecado. Precisam custear seus mais exóticos, estapafúrdios e caros desejos carnais. Como? Eles se infiltram na igreja a fim de usá-la para fins gananciosos. Eles nunca saíram por completo de nosso meio. Deus os mantém dentro de seu soberano, sapiente e eterno plano. Naquele grande dia tudo será revelado. Inclusive alguns mistérios que giram em torno dos falsos mestres em sua constante permanência no seio da igreja eleita: “O Senhor conhece os que lhe pertencem” (2 Tm 2.19). Confiemos. Descansemos. Porém, não nos acovardemos. Paulo nesta particularidade é implacável para com seu pupilo na fé, Timóteo:

“Tem cuidado de ti mesmo e da sã doutrina. Continua nestes deveres; porque, fazendo assim, salvarás tanto a ti mesmo como aos teus ouvintes”. “Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a mansidão” (1 Tm 4.16; 6.11).


Timóteo, além do cuidado pessoal, tinha que velar pela sã doutrina, bem como fugir da avareza ao mesmo tempo em que deveria levar a igreja à constante vigilância tendo como alvo a vida eterna, a pátria celestial. A igreja atual tem sofrido constantemente com os falsos mestres moralistas travestidos de uma falsa piedade e zelo espiritual. Não é por falta de advertência bíblica. Paulo alertou contundentemente a igreja em Filipos. No capítulo 3.2, os falsos mestres são chamados de “cães”. Eles estão dentro da igreja que pertence ao Senhor Jesus Cristo. Eles são indomesticáveis. Organizam-se em matilhas. São impuros, egocêntricos, avarentos, idólatras, carnais, moralistas e hipócritas (Fl 3.1–21). Eles precisam ser urgentemente amordaçados (Tt 1.11).

Então por que a igreja atual tem demasiadamente tolerado tais mestres em seu meio e púlpito? Por que a liderança tem sido em geral indiferente há tão grande lástima? Certamente, o mundanismo que tem permeado todas as áreas da igreja é um agente potencializador e, em muito tem cooperado para tal quadro decadente. Contudo, não minimizemos os desejos mais espúrios e carnais dos falsos mestres e dos seus admiradores que têm se alimentado de seus erros e práticas antibíblicas. Tragicamente, os “Himeneu(s) e Alexandre(s)”, têm sido mais ouvidos do que os “Timóteo(s)” e “Tito(s)”. Quem são midiáticos? Quem são propagandistas? Quem alimenta o ego e a carne? Quem ama o ovacionismo? Quem alimenta o sistema religioso institucionalizado mercantilista? Quem ama desesperadamente o dinheiro? A resposta é muito simples – Os falsos mestres e seus seguidores, a igreja “mundanizada” e escravizada pela mídia mercantilista.

Que faremos então? Oremos, preguemos e paguemos o preço em prol do verdadeiro evangelho, o antigo, mas sempre atual evangelho da graça de Cristo, que nunca foi contrário à propagação do reino nos quadrantes do mundo. Ocupemos então, os meios de comunicação de forma bíblica e piedosa a fim de proclamarmos a salvação em Cristo, mas também, o juízo de Deus contra todos àqueles que não passam de verdadeiros aproveitadores.

Soli Deo Gloria. Amém!

Fonte: Bereianos

27 outubro 2020

Ed René Kivitz e as Hermenêuticas das Minorias

Por Paulo Valle 

Está disponível o vídeo em que Ed René Kivitz, pastor Batista em São Paulo, faz uma série de afirmações que contrariam o grande lastro histórico da fé cristã [Link aqui]. Nele, encontramos declarações do tipo “[…] o mundo mudou […] não é possível tratar a Bíblia como verdades absolutas, porque nós não somos os seguidores de um livro […]”. Em outro momento, propõe ser a igreja uma “carta para o novo mundo” e que não devemos nos fixar em “três textos que não foram atualizados”.

O problema de Kivitz está em sua hermenêutica e esse é o ponto a ser destacado. Levando-se em conta tantas outras declarações polêmicas ao longo dos últimos anos, percebe-se seu liberalismo teológico que, em seu fundamento, não crê que a Bíblia seja a palavra de Deus revelada aos homens, mas o resultado das percepções teológicas de um tempo que ficou para trás e, por isso, deve ser atualizada.

Kivitz opta pela tendência dos últimos trinta ou quarenta anos oferecida pelas hermenêuticas das minorias (precisamos falar no plural) marginalizadas, tais como: carcerária, feminista, homossexual, negra, pobre. É claro que o problema não se encontra no dever de defender a dignidade humana, ainda que alguns julguem que àqueles que se opõem aos pressupostos das minorias, no caso dos cristãos conservadores, por exemplo, devam ser reputados como preconceituosos, com todos os adjetivos que as causas das minorias estabelecem.

Então, qual seria o problema? As hermenêuticas das minorias pressupõem que a causa do problema é, exclusivamente, de caráter social, e não individual. Sendo assim, a sociedade deveria, se necessário com a ajuda do Estado, mudar em relação às minorias. Nesse caso, em uma perspectiva cristã histórica, não deveria ser o homossexual a mudar, arrependendo-se de sua condição diante de Deus, mas a sociedade. Quanto ao negro, que obviamente não é uma condição de pecado, deve-se pagar uma dívida histórica pelo tempo de sofrimento e escravidão.

Nessa linha de raciocínio, a igreja deveria se dedicar ao papel de combater o pecado social. O problema não seria o indivíduo e suas escolhas, mas a resistência social em aceitar os pressupostos das minorias. Na essência do discurso, Cristo não seria o redentor de pecadores arrependidos e muito menos o Evangelho encarnado, mas um exemplo de postura social a ser seguida em relação às minorias pelos componentes da sociedade.

Sob as hermenêuticas das minorias, Kivitz propõe um releitura das Escrituras à luz de uma atualização de seu ensino às realidades atuais. É compreensível, mas não aceitável, o seu caminho, pois, não podendo desconstruir as bases da leitura literal da Bíblia, fundamento da Teologia Bíblica, apela à persuasão ad scripturam, isto é, se não é possível derrubar os argumentos das Escrituras, ataque-as, mesmo que sutilmente. E isso é o que ele faz.

Conhecer as Escrituras e os pressupostos das minorias logo nos levará à condição de uma necessária escolha entre uma e outra. Se optarmos pelo evangelho, não precisaremos do discursos ideológicos das minorias, mas se optarmos pelas ideologias das minorias, teremos abandonado o evangelho. O evangelho une, pois todos os homens estão na mesma condição diante de Deus e, em Cristo, retornam à essência do que é ser humano. Já as hermenêuticas das minorias separam.

Aqui está a ironia: as hermenêuticas das minorias, que visam acabar com as segregações, segregam. Tratam-se de hermenêuticas preconceituosas, que fragmentam a sociedade em grupos ideológicos, mesmo dentro da igreja, dividindo a sociedade. O evangelho lida com isso de uma maneira diferente e apropriada, pois em sua cosmovisão, “nele não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher” (Gl 3.28). Não precisamos de uma releitura para atualizar as Escrituras. Precisamos crer. Precisamos conhecer os fundamentos da fé.

NOTA FINAL

Não tenho me esquivado de emitir minha opinião sobre algumas poucas coisas que vêm me preocupando nos arraiais da fé cristã. Como um cristão, tenho buscado estar submetido às Escrituras e oferecer um parecer sobre um tema. Por isso, se você, leitor, não está disposto ao diálogo, mas, ao contrário, à ofensa, resista à tentação, se lhe for possível, de me ofender. Apresentei argumentos. Use argumentos. Nos comportemos como seres que pensam. No caso de erro, aponte-o para que eu o considere.



25 outubro 2020

Devem os Pastores de Hoje se Importarem com a Reforma?

Por D.A. Carson

Pastores dedicados ao ministério têm tantas coisas a fazer. Além da preparação semanal cuidadosa de novos sermões e estudos bíblicos, das horas reservadas ao aconselhamento, do cuidado no desenvolvimento de relacionamentos excelentes, do evangelismo cuidadoso e atencioso (e prolongado!), da mentoria da próxima geração, das incessantes exigências de administração e supervisão, para não mencionar a nutrição de sua própria alma, há uma série regular de prioridades familiares, que incluem o cuidado de pais idosos e de netos preciosos e um cônjuge doente (ou qualquer número de permutações de tais responsabilidades), e, para alguns, com níveis de energia diminuídos em proporção inversa aos anos que vão avançando.

Portanto, por que deveria eu reservar horas valiosas para ler sobre a Reforma, que teve início há cerca de 500 anos? É verdade que os Reformadores viveram em tempos de mudanças rápidas, mas quantos deles pensaram seriamente sobre a epistemologia pós-moderna, sobre o transgenderismo ou a nova (in)tolerância? Se desejamos aprender com os antepassados, não seria mais sábio escolher algum mais recente? Não necessariamente.

O Pastor como Clínico Geral 

Um pastor é, por definição, algo semelhante a um clínico geral. Não é especialista em, digamos, divórcio e novo casamento, história de missões, análise cultural ou períodos específicos da história da igreja. No entanto, a maioria dos pastores necessita desenvolver conhecimentos básicos mínimos em todas estas áreas, como parte da aplicação da Palavra de Deus às pessoas ao seu redor. Isto significa que ele tem obrigação de dedicar algum tempo a cada ano à leitura em áreas abrangentes. Uma destas áreas é a teologia histórica. A literatura histórica bem selecionada nos expõe a diferentes culturas e tempos, expande nossos horizontes e nos permite ver como os cristãos de outros tempos e locais refletiram sobre o que a Bíblia diz e como aplicar o evangelho a toda a vida. Continue a ler!

Em segundo lugar e mais especificamente, um conhecimento progressivo da teologia histórica é uma maravilha para destruir a ilusão de que a exegese perspicaz e rigorosa começou nos séculos XIX ou XX. Nem tudo o que foi escrito há 500 anos, ou há 1.500 anos, é completamente admirável e vale a pena repetir, da mesma maneira como nem tudo escrito hoje é completamente admirável e vale a pena repetir. Mas tal leitura histórica é o único antídoto efetivo para a trágica atitude de um seminário (nome retido para proteger os culpados) que por muito tempo argumentou que seus alunos somente necessitavam aprender a fazer uma boa exegese e uma hermenêutica responsável: não necessitavam aprender o que os outros pensam, pois dominando a exegese e a hermenêutica, bastava virar a manivela e uma teologia fiel sairia por si só. Quanta ingenuidade de pensar que a exegese e a hermenêutica são disciplinas neutras e livres de valores! A verdade é que necessitamos estudar outros pastores teólogos, tanto de nossos dias quanto do passado, se quisermos crescer em riqueza, nuance, insight, autocorreção e fidelidade ao evangelho.

Por que a Reforma? 

Mas por que focar especificamente na Reforma? Embora tenha sido desencadeada pela questão das indulgências, o debate sobre indulgências logo levou, direta ou indiretamente, a debates exploratórios sobre a autoridade, o lócus da revelação (Podemos desfrutar de um depósito ostensivamente dado à igreja abrangendo tanto as Escrituras quanto a Tradição, ou nos ater somente às Escrituras?), sobre o purgatório e a autoridade pela qual pecados são perdoados, sobre o tesouro de satisfações, sobre a natureza e o lócus da igreja, a natureza e autoridade de sacerdotes/presbíteros, a natureza e função da Eucaristia, sobre os santos, a justificação, a santificação, a natureza do novo nascimento, o poder escravizador do pecado, e muito mais.

Todas estas questões ainda são centrais no currículo teológico atual. Mesmo a questão das indulgências ainda é importante: tanto o Papa Bento quanto o Papa Francisco ofereceram indulgências plenárias especiais sob certas circunstâncias (embora em uma estrutura mais restrita do que a adotada por Tetzel). Além disso, o estudo da Reforma é especialmente salutar como resposta àqueles que pensam que a chamada “Grande Tradição”, preservada nos primeiros credos ecumênicos, é invariavelmente uma base adequada para a unidade ecumênica, como se não houvesse heresias inventadas após o século IV. Nesta frente, o estudo da Reforma é benéfico para gerar um pouco de realismo histórico.

Além da hermenêutica característica da Reforma que brotou da “sola Scriptura”, os Reformadores batalharam arduamente para desenvolver uma hermenêutica rigorosa que se afastasse dos caprichos da hermenêutica quádrupla que chegou ao topo durante a Idade Média. Isto não significa que fossem literalistas simplistas, incapazes de apreciar diferentes gêneros literários, metáforas sutis, e outras figuras simbólicas da fala; significa, ao contrário, que eles se esforçaram muito para deixar a Escritura falar em seus próprios termos, sem permitir que métodos externos fossem impostos ao texto como se fosse um filtro extra-textual projetado para garantir as respostas “certas”. Em parte, isso estava ligado à compreensão de “claritas Scripturae”, a perspicuidade ou clareza das Escrituras.

A teoria católica sobre a espiritualidade geralmente distingue entre a vida dos católicos comuns e a vida espiritual daqueles que são católicos realmente profundamente comprometidos. É quase uma versão católica da teologia da “vida superior”. Diz-se que leva à conexão mística com Deus, e que se caracteriza por práticas espirituais e disciplinas extraordinárias. Mas embora eu tenha lido bem, digamos, Julian de Norwich, encontrei grande quantidade de misticismo subjetivo e praticamente nenhum fundamento nas Escrituras ou no evangelho. E, por tudo que me é precioso, não consigo imaginar Pedro ou Paulo recomendando a retirada monástica para alcançar uma maior espiritualidade: é sempre um perigo quando certas práticas ascéticas se tornam caminhos normativos para a espiritualidade, quando não há apoio apostólico para elas.

Nossa geração contemporânea, cansada de abordagens meramente cerebrais ao cristianismo, é atraída por padrões patrísticos tardios ou medievais de espiritualidade. Que alívio, então, acorrer aos mais calorosos escritos dos Reformadores, e descobrir de novo a busca de Deus e sua justiça bem fundamentada nas sagradas Escrituras. É por isto que a carta de Lutero ao seu barbeiro permanece tão clássica: está cheia de aplicação piedosa do evangelho aos cristãos comuns, elaborando uma concepção de espiritualidade que não é reservada à elite dos eleitos, mas disponível a todos os irmãos e irmãs em Cristo. Da mesma forma, os capítulos de abertura do Livro III das Institutas de Calvino proporcionam uma reflexão mais profunda sobre a verdadeira espiritualidade do que muitos volumes contemporâneos muito mais extensos.

A Reforma é de importância central para a compreensão da história ocidental moderna. Três movimentos em grande escala prepararam o cenário para o mundo ocidental contemporâneo: o Renascimento, a Reforma e o Iluminismo. Cada um dos três é complexo, e os estudiosos continuam a debater suas muitas facetas. No entanto, a reivindicação básica do papel fundamental destes três movimentos não pode ser facilmente contestada.

Por que esta Reforma? 

Há lições a serem aprendidas com a Reforma sobre a soberania de Deus em movimentos de reavivamento e reforma. Afinal de contas, houve outros reformadores e movimentos de reforma que eram promissores, mas basicamente se dissiparam. John Wycliffe (c.1320 – 1384) era um teólogo, filósofo, eclesiástico, reformador eclesiástico e tradutor bíblico, e o trabalho que ele fez prenunciou a Reforma, mas não se pode dizer que a precipitou. Jan Hus (1369 – 1415) foi um padre checo, reformador, estudioso, reitor da Universidade Charles em Praga, e arquiteto de um movimento reformador, muitas vezes chamado de “hussitismo”, mas como seria de esperar, foi martirizado e seu movimento, embora importante na Boêmia, alcançou pouco mais na Europa do que um status de antecessor.

Por que razão Lutero, Calvino e Zwinglio viveram, o tempo suficiente para dar direção a uma Reforma maciça, enquanto o tradutor bíblico William Tyndale (1494—1536) foi assassinado? A retrospectiva histórica oferece muitas razões pelas quais este viveu e aquele morreu, por que uma ação reformadora se esgotou e outra acendeu uma chama irreprimível. Vale a pena entender os detalhes históricos mas os olhos da fé verão a mão de Deus na reforma genuína e nos recordarão de oferecer nossos louvores pelo que Ele fez, e nossas petições pelo que ainda lhe pedimos que faça.

Exponha a Bíblia, envolva-se com a Teologia 

A Reforma se destaca como um movimento que buscou integrar a exegese dos livros bíblicos com o que hoje chamaríamos de teologia sistemática. Nem todos os Reformadores fizeram isso da mesma maneira. Alguns agiram como se estivessem expondo os textos bíblicos, mas tendiam, na realidade, a saltar de uma palavra ou frase seminal para a próxima palavra ou frase seminal, parando em cada ponto para descarregar tratamentos teológicos dos vários “loci”.

Outros, como Bucer, seguiram o texto mais de perto, mas também descarregaram seu tratamento dos “loci” no caminho, tornando seus comentários extraordinariamente longos e densos. Calvino se esforçou em seus comentários para o que chamou de “brevidade lúcida”, e reservou sua teologia sistemática principalmente para aquilo que se encorpou e se tornou os quatro volumes de Institutas da Religião Cristã. Na verdade, os comentários de Calvino são tão “simples” que não poucos estudiosos o criticaram por não incluir teologia suficiente neles.

Mas o que é impressionante sobre todos estes Reformadores, independentemente de seus sucessos ou fracassos para realizar uma integração adequada, é a maneira como eles simultaneamente tentaram expor a Bíblia e se envolver em análise teológica séria. Em contraste, hoje poucos sistemáticos são excelentes exegetas, e poucos exegetas manifestam muito interesse pela teologia sistemática. As exceções apenas comprovam a regra.

Compreender o tempo deles — e o nosso 

Os Reformadores entendiam seus tempos muito bem. Embora se apoiassem na “norma normativa” das Sagradas Escrituras, eles realmente entendiam onde estavam as linhas sísmicas em seu época e locais. Alguns dos mesmos problemas permanecem hoje. Por outro lado, o que devemos retirar dos Reformadores a este respeito não é simplesmente uma lista de tópicos sobre os quais eles se concentraram, mas a importância de entender nossos tempos e aprender como engajar nossa época com a verdade das Escrituras.

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A Bíblia profetizou o coronavírus?

Por Jairo Namnún

Por momentos é dífícil acreditar no que vivemos hoje. Países fechados, eventos cancelados, cultos suspensos; supermercados lotados e sem produtos básicos; atrações vazias; e, o mais importante, milhares de pessoas falecidas, centenas de milhares enfermas e milhões assustadas. O coronavírus afeta a quase todos os países do mundo.

Nossa geração nunca experimentou uma pandemia neste nível, e os cristãos ao redor do mundo estão buscando o que podemos aprender e como devemos agir em meio a esta situação. Isto levanta a questão: a Bíblia profetizou o coronavírus? Seria o COVID-19 uma das pragas bíblicas?

Sim, a Bíblia profetizou doenças e pragas

Por um lado, lembremos que a Bíblia fala sobre pragas significativas antes da segunda vinda de Cristo. Em Lucas 21.11, nosso Senhor Jesus adverte seus discípulos: “Haverá grandes terremotos, epidemias e fome em vários lugares, coisas espantosas e também grandes sinais do céu”. Esta passagem mostra uma terra inquieta e em tribulação, mencionando especificamente a existência de pragas e fome como um prelúdio para o fim (Lc 21.9). Essas profecias tem protegido a Igreja nestes 2.000 anos, daqueles que afirmam ser o Messias (Lc 21.8).

Em Apocalipse 6.8, encontramos outra passagem também importante neste momento: “E olhei, e eis um cavalo amarelo e o seu cavaleiro, sendo este chamado Morte; e o Inferno o estava seguindo, e foi-lhes dada autoridade sobre a quarta parte da terra para matar à espada, pela fome, com a mortandade e por meio das feras da terra”. Aqui, abrir o quarto selo produz um cavalo “amarelo” (ou “muito pálido”, isto é, doente), que traz dor e morte através de guerras, doenças e desastres naturais. Esses selos são abertos como juízo de Deus para uma terra surda diante do chamado do evangelho.

Uma última verdade a considerar é a que Romanos 8.22 nos ensina: “Sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora”. O gemido da criação é evidente quando as árvores caem e os animais sofrem, mas é particularmente evidente quando um vírus microscópico é capaz de causar milhares de mortes e paralisar todos os sistemas humanos. Como Deus declarou, vivemos em uma terra disfuncional.

Não, a Bíblia não parece profetizar esta doença e praga

Embora seja verdade que a Bíblia nos adverte e nos apresente a realidade de pragas e doenças e uma terra que geme, podemos dizer, com a consciência limpa, que essas profecias são específicas para o coronavírus? Não é possível, ou provável, que essas profecias tenham sido apropriadas a outras doenças e pragas anteriores, tal como a gripe espanhola (que matou mais de 20 milhões de pessoas)?

Devemos admitir que muitas das profecias bíblicas relacionadas aos tempos apocalípticos têm um sentido mais geral do que específico.

Nessa mesma linha, devemos ter muito cuidado para não forçar um texto bíblico a dizer algo especificamente para a nossa situação atual, pois estaríamos reivindicando o lugar de profetas de Deus. E se não se cumpre? Se Deus decide mostrar graça e essa pandemia for controlada, e nem um quarto da terra morre (como profetizado em Ap 6), nem a segunda vinda de Cristo ocorre em nossa geração (como Lc 21 parece ensinar), quem fica como mentiroso?

De nenhuma maneira nosso Senhor mente, mas nós podemos terminar como mentirosos ou, inclusive, sendo falsos profetas (Dt 18.21-22).

Além disso, não devemos ignorar a advertência de Jesus: “Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão o Pai” (Mt 24.36). Cristo deixa claro que ninguém sabe o momento de sua segunda vinda. Se pensarmos que as profecias sobre pragas e doenças se referem especificamente ao coronavírus, estamos em um território perigoso para afirmar que sabemos mais do que o que o Pai queria que soubéssemos sobre o retorno de Jesus.

Certeza bíblica em tempos de coronavírus

Não há dúvida de que vivemos em tempos difíceis, sem precedentes para a minha geração. Especialistas no assunto falam de possíveis centenas de milhares de outros infectados, o que significará muito mais mortes. E, com toda a probabilidade, levará muito tempo para os mercados econômicos se recuperarem.

Quero crer que estes são sinais antes do fim. Me uno à Igreja que tem clamado Maranata! por 2.000 anos. E acredito firmemente que não são tempos para ficarmos ansiosos, mas de oração (Fp 4.6-7). É também um momento especial para fazer a vontade de Deus, amando os necessitados, particularmente as viúvas e os órfãos ao redor (Tg 1.27), e os idosos que são particularmente suscetíveis a esta doença.

Não podemos dizer com certeza que o coronavírus é o cumprimento de uma profecia bíblica específica, mas podemos ter absoluta confiança de que Deus não se afastou nem um centímetro do Seu trono. Ele continua nos céus, fazendo o que bem lhe parece (Sl 115.3), para sua glória e nosso bem.

Ora, ao começarem estas coisas a suceder, exultai e erguei a vossa cabeça; porque a vossa redenção se aproxima (Lc 21.28).


20 outubro 2020

A Mensagem da Reforma Para os dias de Hoje

Por Solano Portela 

I. Por que Lembrar a Reforma? 

Em 31 de outubro de 1517 Martinho Lutero pregou as suas hoje famosas 95 Teses na porta da catedral de Wittenberg. Periodicamente as igrejas evangélicas relembram aqueles eventos que, na soberana providência de Deus, preservaram viva a sua igreja. Muitos, entretanto, questionam essas comemorações e alguns chegam até a contestar a lembrança da Reforma. "Por que considerar o que aconteceu há quase 500 anos?"

Seguramente muitos não estudam a Reforma por mero desconhecimento, por falta de informação, por não se aperceberem da sua importância na vida da igreja e da humanidade. Entretanto, muitos procuram um esquecimento voluntário daqueles eventos do século XVI. Martin Lloyd-Jones 1 nos fala que entre aqueles que rejeitam a memória da Reforma temos, basicamente, dois tipos de argumentação: 1. "O passado não tem nada a nos ensinar." Segundo este ponto de vista, o progresso científico e o futuro é o que interessa. Firmadas em uma mentalidade evolucionista, estas pessoas partem para uma abordagem histórica de que "o presente é sempre melhor do que o passado" e assim nada enxergam na história que possa nos servir de lição, apoio, ou alerta. 2. A segunda forma de rejeição parte daqueles que vêem a Reforma como uma tragédia na história religiosa da humanidade. Estes afirmam que deveríamos estar estudando a unidade em vez de um movimento que trouxe a divisão e o cisma ao cristianismo. Dentro desta visão, perdemos tempo quando nos ocupamos de algo tão negativo.

Podemos dar graças, entretanto, pelo fato de que um segmento da igreja ainda acha importante estar relembrando e aplicando as questões levantadas pelos reformadores. Mas é o mesmo Martin Lloyd-Jones que alerta para um perigo que ainda existe dentro do interesse pelos acontecimentos que marcaram o século XVI. Na realidade, ele nos confronta com uma forma errada e uma forma certa de relembrar o passado, do ponto de vista religioso.

A forma errada, seria estudar o passado por motivos meramente históricos. Esse estudo seria semelhante à abordagem que um antiquário dedica a um objeto. Por exemplo, quando ele examina uma cadeira, ele não está interessado em saber se ela é confortável, se dá para sentar-se bem nela, se ela cumpre adequadamente a função de cadeira. Basicamente a preocupação se resume à sua idade, ao seu estado de conservação e, principalmente, a quem pertenceu. Isto determinará o valor daquele objeto para o antiquário e, conseqüentemente, o seu estudo é motivado por essa visão.

Em Mateus 23.29-35 teríamos um exemplo dessa abordagem errada do passado. O trecho diz:

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! ...porque edificais os sepulcros dos profetas, adornais os túmulos dos justos, e dizeis: Se tivéssemos vivido nos dias de nossos pais, não teríamos sido seus cúmplices no sangue dos profetas. Assim, contra vós mesmos testificais que sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós, pois, a medida de vossos pais. Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do inferno? Por isso eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas. A uns matareis e crucificareis; a outros açoitareis nas vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade; para que sobre vós recaia todo o sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o santuário e o altar.


Jesus diz que aqueles homens pagavam tributo à memória dos profetas e líderes religiosos do passado. Eles prezavam tanto a história, que cuidavam dos sepulcros e os enfeitavam. Proclamavam a todos que os profetas eram homens bons e nobres e atacavam quem os havia rejeitado. Diziam eles: "se estivéssemos lá, se vivêssemos naquela época, não teríamos feito isso!" Mas Jesus não se impressiona e os chama de hipócritas! A argumentação de Jesus é a seguinte: Se vocês se dizem admiradores dos profetas, como é que estão contra aqueles que representam os profetas e proclamam a mesma mensagem que eles proclamaram? Ele prova a sinceridade deles pondo a descoberto a sua atitude no presente para com aqueles que agora pregam a mensagem de Deus e mostra que eles próprios seriam perseguidores e assassinos dos proclamadores da mensagem dos profetas.

Esse é também o nosso teste: uma coisa é olhar para trás e louvar homens famosos, mas isso pode ser pura hipocrisia se não aceitamos, no presente, aqueles que pregam a mensagem de Lutero e de Calvino. Somos mesmo admiradores da Reforma, daqueles grandes profetas de Deus?

Mas existe uma forma correta de relembrar o passado. Nós a deduzimos não apenas por exclusão e inferência do texto anterior, mas porque temos um trecho na Palavra de Deus—Hebreus 13.7-8, que diz: "Lembrai-vos dos vossos guias, os quais vos falaram a palavra de Deus, e, atentando para o êxito da sua carreira, imitai-lhes a fé. Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente."

A maneira correta de relembrar a Reforma é, portanto, verificar a mensagem, a Palavra de Deus, como foi proclamada, e isso não apenas por um interesse histórico de "antiquário," mas para que possamos imitar a fé demonstrada pelos reformadores. Devemos observar aqueles eventos e aqueles homens, para que possamos aprender deles e seguir o seu exemplo, discernindo a sua mensagem e aplicando-a aos nossos dias.

II. Distorções Verificadas na Lembrança da Reforma

Muitos de nós que crescemos neste país de maioria católica podemos nos recordar de, numa ou outra ocasião, termos ouvido alguma posição distorcida sobre os fatos da Reforma do Século XVI, ou sobre os reformadores. Uma das versões comuns, na visão da Igreja Católica, era apresentar Lutero como um monge que queria casar e que por isso teria brigado com o papa. Outros diziam que Lutero foi alguém que ambicionava o poder político. Ainda outros falam que Lutero era apenas um místico rebelde, sem convicções reais e profundas. Até mesmo a descrição dele como doente da alma, psicopata, enganador e falso profeta permanece em vários escritos de historiadores famosos do período. 2 Um famoso autor e historiador católico brasileiro chegou a escrever que "excomungado em Worms, em 1521, Lutero entregou-se ao ócio e à moleza." 3

Em anos mais recentes, um novo de tipo de abordagem da Reforma tem surgido nos círculos católicos, que igualmente representa alguma forma de distorção. Por exemplo, nos 500 anos do nascimento de Lutero (1983) o Papa participou de algumas cerimônias comemorativas do evento, na Alemanha. 4 Certamente não foi por convencimento das verdades ensinadas por Lutero, pois a igreja que representa nada mudou doutrinariamente após a sua participação. A visita do Papa evidencia, entretanto, uma comprovação de que a imagem de Lutero e os princípios que pregava estão sendo alvo de revisionismo histórico e de distorções. Diluindo-se a força das doutrinas pregadas pelos reformadores, possibilita-se uma aproximação com os fatos históricos descontextualizados.

Em 1967, nos 450 anos da Reforma, a revista TIME escreveu o seguinte: "O domingo da Reforma está se tornando um evento ecumênico que olha para o futuro, em vez de para o passado." 5 Na mesma ocasião, um semanário jesuíta fez esta afirmação: "Lutero foi um profundo pensador espiritual que foi levado à revolta por papas mundanos e incompetentes." 6 Podemos ver como essa colocação faz da Reforma uma revolta contra pessoas temporais e não contra um sistema de doutrinas de uma igreja apóstata, que persiste até hoje.

Refletindo o sentimento ecumênico que tem permeado a segunda metade do século XX, bispos das igrejas católica e luterana dos Estados Unidos fizeram uma declaração solidária, no aniversário da Reforma, dizendo o seguinte: "…recomendamos um programa conjunto, entre os membros de nossas igrejas, de estudos, reflexão e oração." 7 Podemos imaginar discípulos jesuítas consciente e sinceramente fazendo estudos, reflexão e oração em comemoração à Reforma do Século XVI? Certamente só se ignorarem os pontos fundamentais de doutrina levantados pelos reformadores.

Refletindo uma visão político-sociológica da Reforma, uma outra distorção permeou durante muito tempo o pensamento revisionista da história. Na época em que o comunismo ainda imperava na Europa oriental, porta-vozes do partido comunista da Alemanha relembraram Lutero como sendo "um precursor da revolução." 8 

III. Esquecimento Doutrinário dos Princípios da Reforma

Muitas das ações descritas acima, de comemoração conjunta da Reforma por católicos e protestantes, só ocorrem porque não se fala nas doutrinas cardeais levantadas pelo movimento do século XVI. Tristemente, temos observado que mesmo no campo chamado "evangélico" a situação é semelhante. Raras são as igrejas e denominações evangélicas que ensinam o que foi a Reforma do Século XVI e muito poucas as que comemoram o evento e aproveitam para relembrar e reaplicar os princípios nela levantados. Mais recentemente, observamos que tem sido removida a clara linha que separa as igrejas protestantes da católica quanto ao entendimento da fé cristã e da salvação. Esta ação, até alguns anos atrás praticada somente pela teologia liberal, que já havia declaradamente abandonado os princípios norteadores da Palavra de Deus, hoje está presente no campo protestante evangélico.

A falta de discernimento e conhecimento histórico, prático e teológico tem-se achado até mesmo dentro do campo ortodoxo e inclui teólogos reformados e tradicionais. Referimo-nos ao documento "Evangélicos e Católicos Juntos" (Evangelicals and Catholics Together), publicado em 1994 nos Estados Unidos, que tem sido uma fonte de controvérsia desde a sua divulgação.

A base e intenção do documento foi a realização de ações conjuntas de cunho moral-político por católicos e protestantes, 9 mas ele evidencia uma grande falta de discernimento e sabedoria. Por exemplo, o documento encoraja a que as pessoas convertidas sejam respeitadas em sua decisão de filiar-se quer a uma igreja católica quer a uma protestante. 10 Essas declarações foram emitidas como se a fé fosse a mesma, como se a doutrina fosse igual, como se a base dos ensinamentos fosse comum, como se as distinções inexistissem ou fossem extremamente secundárias.

A premissa básica do documento "Evangélicos e Católicos Juntos" é que a evangelização de católicos é algo indesejável e não recomendável, uma vez que a verdadeira fé e prática cristã devem já estar presentes na Igreja de Roma. Em sua essência, esse documento é a grande evidência do esquecimento da Reforma do Século XVI e do que ela representou e representa para a verdadeira igreja de Cristo.

Algum evangélico poderia argumentar, "mas isso é coisa de americano, não atinge o nosso país!" Ledo engano! A conhecida e prestigiada Revista Ultimato trouxe em suas páginas, no número de setembro de 1996, artigos e depoimentos, advindos do campo evangélico conservador, refletindo basicamente a mesma compreensão do documento "Evangélicos e Católicos Juntos," ou seja: as distinções com relação à Igreja de Roma seriam secundárias e não essenciais.

Tal situação reflete pelo menos uma crassa ignorância da doutrina católica romana. Por exemplo, os canônes 9 e 10 do Concílio de Trento, escritos no auge da Contra-Reforma mas nunca ab-rogados até os dias de hoje, dizem o seguinte:

Cânon 9: Se alguém disser que o pecador é justificado somente pela fé, querendo dizer que nada coopera com a fé para a obtenção da graça da justificação; e se alguém disser que as pessoas não são preparadas e predispostas pela ação de sua própria vontade—que seja maldito.

Cânon 11: Se alguém disser que os homens são justificados unicamente pela imputação da justiça de Cristo ou unicamente pela remissão dos seus pecados, excluindo a graça e amor que são derramados em seus corações pelo Espírito Santo, e que permanece neles; ou se alguém disser que a graça pela qual somos justificados reflete somente a vontade de Deus—que seja maldito. 11

Estas declarações, ou melhor, maldições, foram pronunciadas contra os protestantes. Elas atingem o cerne da doutrina da justificação somente pela fé. São afirmações contra a defesa inabalável da soberania de Deus na salvação, proclamada pela Reforma do Século XVI, e continuam fazendo parte dos ensinamentos da Igreja Católica.

A visão distorcida do evangelho e da evangelização, no campo católico romano, não é algo que data apenas da era medieval. Veja-se esta declaração extraída da encíclica papal "O Evangelho da Vida," escrita e divulgada à Igreja em 1995: "O Evangelho é a proclamação de que Jesus possui um relacionamento singular com todas as pessoas. Isso faz com que vejamos em cada face humana a face de Cristo." 12 Certamente teríamos que chamar esta visão do evangelho de universalismo e declará-la contrária à fé cristã histórica.

Perante esse emaranhado de opiniões tão diferenciadas, perante o testemunho e o registro implacável da história, perante a crise de identidade, de doutrina e de prática litúrgica que nossas igrejas atravessam, qual deve ser a nossa compreensão da Reforma?

IV. Considerações Práticas Sobre a Reforma e os Reformadores

Nosso apreço pela Reforma e suas doutrinas não deve levar-nos a uma visão utópica e idealista com relação aos seus personagens principais. Devemos reconhecer os seus feitos, mas também as suas limitações. É na compreensão da falibilidade humana que detectamos a mão soberana de Deus empreendendo os seus propósitos na história. Vejamos alguns pontos que valem a pena ser recordados:

A. Lutero foi um Homem Falível

As 95 Teses de Lutero 13 realmente representaram um marco e um ponto de partida para a recuperação das sãs doutrinas. Entre as teses encontramos expressões de compreensão dos ensinamentos da Bíblia, como por exemplo na Tese 62 ("O verdadeiro tesouro da Igreja é o sacrossanto Evangelho da glória e da graça de Deus") e na Tese 94 ("Os cristãos devem ser exortados a seguir a Cristo, a sua cabeça, com diligência…"). Entretanto, devemos reconhecer que elas estão longe de serem, em sua totalidade, expressões precisas da verdadeira fé cristã. Elas registram, na realidade, o início do pensamento de Lutero, que seria trabalhado e refinado por Deus ao longo de seus estudos e experiências posteriores. Vejamos os seguintes exemplos:

  • Lutero faz referência ao purgatório, sem qualquer contestação à doutrina em si, em doze das suas teses (10, 11, 15, 16, 17, 18, 19, 22, 25, 26, 29, 82). Ex.: Tese 29: "Quem disse que todas as almas no Purgatório desejam ser redimidas? Temos exceções registradas nos casos de S. Severino e S. Pascal, de acordo com uma lenda sobre eles."
  • Além da menção aos santos na tese acima, Lutero faz referência a Maria como mãe de Deus (Tese 75), aparentemente não no sentido histórico do termo (o termo histórico, em grego theotokos, tinha o propósito de reconhecer a divindade de Jesus 14), mas no conceito católico da expressão, que infere a existência de um poder especial em Maria. Diz a Tese 75: "É loucura considerar que as indulgências papais têm tão grande poder que elas poderiam absolver um homem que tivesse feito o impossível e violado a própria mãe de Deus."
  • Quatro teses inferem legitimidade ao papado e à sucessão apostólica (77, 5, 6, 9). Ex.: Tese 77: "É blasfêmia contra São Pedro e contra o Papa dizer que São Pedro, se fosse o papa atual, não poderia conceder graças maiores [do que as atualmente concedidas]."

Além disso, verificamos que resquícios do romanismo se fizeram presentes na formulação da Igreja Luterana, principalmente na sua estrutura hierárquica e na compreensão quase católica dos elementos da Ceia do Senhor. Possivelmente também poderíamos dizer que na Reforma encontramos individualismo em excesso e falta de unidade entre irmãos de mesma persuasão teológica (principalmente nas interações dos luteranos com Zuínglio e Calvino). Mas, com todas essas limitações, os reformadores foram poderosamente utilizados por Deus na preservação das suas verdades.

B. A Revolta de Lutero foi Eminentemente Espiritual

Não podemos compreender a Reforma se acharmos que Lutero liderou uma revolta contra pessoas, contra padres corruptos, apenas. A ação de Lutero foi uma revolta contra uma estrutura errada e uma doutrina errada de uma igreja que distorcia a salvação. Não foi um movimento sociológico: ele não pretendia ensinar a salvação do homem pela reforma da sociedade, mas compreendia que a sociedade era reformada pelas ações do homem resgatado por Deus. Na realidade, a Reforma do Século XVI foi um grande reavivamento espiritual operado por Deus, que começou com uma experiência pessoal de conversão. 

C. Lutero não Formulou Novas Doutrinas, ou Novas Verdades, mas Redescobriu a Bíblia em sua Pureza e Singularidade

As 95 Teses representam coragem, despreendimento e uma preocupação legítima com o estado decadente da igreja e com a procura dos verdadeiros ensinamentos da Palavra. Mas é um erro acharmos que a Reforma marca o surgimento de várias doutrinas nunca dantes formuladas. A Palavra de Deus, cujas doutrinas estavam soterradas sob o entulho da tradição, é que foi resgatada. Uma das características comuns das seitas é a apresentação de supostas verdades que nunca haviam sido compreendidas, até a sua revelação a algum líder. Essas "verdades" passam a ser determinantes da interpretação das demais e ponto central dos ensinamentos empreendidos. A Reforma coloca-se em completa oposição a esta característica. Nenhum dos reformadores declarou ter "descoberto" qualquer verdade oculta, mas eles tão somente apresentaram em toda singeleza os ensinamentos das Escrituras. Seus comentários e controvérsias versaram sempre sobre a clara exposição da Palavra de Deus.

Mais uma vez, Martin Lloyd-Jones nos indica "que a maior lição que a Reforma Protestante tem a nos ensinar é justamente que o segredo do sucesso, na esfera da Igreja e das coisas do Espírito, é olhar para trás." 15 Lutero e Calvino, diz ele, "foram descobrindo que estiveram redescobrindo o que Agostinho já tinha descoberto e que eles tinham esquecido." 16 

V. A Mensagem da Reforma para os Dias de Hoje

As mensagens proclamadas pela Reforma continuam sendo pertinentes aos nossos dias. Da mesma forma como as Escrituras são sempre atuais e representam a vontade de Deus ao homem, em todas as ocasiões, a Reforma, com suas mensagens extraídas e baseadas nessas Escrituras, transborda em atualidade para a cena contemporânea da igreja evangélica. Vejamos apenas alguns pontos pregados pelos Reformadores e a sua aplicação presente: 

A. A Reforma Resgatou o Conceito do Pecado – Rm 3.10-23

A venda das indulgências mostra como o conceito do pecado estava distorcido na época da Reforma do Século XVI. A igreja medieval e, principalmente, as ações de Tetzel, fugiram totalmente à visão bíblica de que pecado é uma transgressão da Lei de Deus e qualquer falta de conformidade com seus padrões de justiça e santidade. A essência do pecado foi banalizada ao ponto de se acreditar que o seu resgate podia se efetivar pelo dinheiro. É fácil vermos as implicações que a falta de um conceito bíblico de pecado tem para outras doutrinas chaves da fé cristã. Por exemplo: se o resgate é em função da soma de dinheiro paga, como fica a expiação de Cristo, qual a necessidade dela? Ao se insurgir contra as indulgências Lutero estava, na realidade, reapresentando a mensagem da Palavra de Deus sobre o homem, seu estado, suas responsabilidades perante o Deus Santo e Criador, e sua necessidade de redenção.

Hoje esses conceitos estão cada vez mais ausentes da doutrina da igreja contemporânea. A mensagem da Reforma continua necessária aos nossos dias. Estamos nos acostumando a ouvir que todas as ações são legítimas; que pecado é uma conceito relativo e ultrapassado; que o que importa é a felicidade pessoal e não a observância de princípios. Mesmo nos meios evangélicos existe grande falta de discernimento — há uma preocupação muito maior em encontrar justificativas, explicações e racionalizações do que com a convicção de pecado e o arrependimento.

B. A Reforma Pregou a Doutrina da Justificação Somente pela Fé – Gl 3.10-14

A Igreja Católica havia distorcido o conceito da salvação, pregando abertamente que a justificação se processava por intermédio das boas obras de cada fiel. Lendo a Palavra, Lutero verificou quão distanciada esta pregação estava das verdades bíblicas — a salvação era uma graça concedida mediante a fé. Todo o trabalho vem de Deus. As boas obras não fornecem a base para a salvação, mas são evidências e sub-produtos de uma salvação que procede da infinita misericórdia de Deus para com o homem pecador que ele arranca da perdição do pecado.

Hoje estamos novamente perdendo essa compreensão – a mensagem da Reforma é necessária. A justificação pela fé continua sendo esquecida e procura-se a justificação pelas obras. Muitas vezes prega-se e procura-se a justificação perante Deus através do envolvimento em ações de cunho social.

A justificação pela fé está sendo, ultimamente, considerada até um ponto secundário, mesmo no campo evangélico, partindo-se para trabalhos de ampla cooperação, como base de fé e de unidade, como vimos no pensamento expresso pelo documento já referido: Evangélicos e Católicos Juntos.

C. A Reforma Resgatou o Conceito da Autoridade Vital da Palavra de Deus – 2 Pe 1.16-21

Na ocasião da Reforma, a tradição da igreja já havia se incorporado aos padrões determinantes de comportamento e doutrina e, na realidade, já havia superado as prescrições das Escrituras. A Bíblia era conservada distante e afastada da compreensão dos devotos. Era considerada um livro só para os entendidos, obscuro e até perigoso para as massas. Os reformadores redescobriram e levantaram bem alto o único padrão de fé e prática: a Palavra de Deus, e por este padrão aferiram tanto as autoridades como as práticas religiosas em vigor.

Hoje o mundo está sem um padrão. Mas não é somente o mundo: a própria igreja evangélica está voltando a enterrar o seu padrão em meio a um entulho místico pseudo-espiritual – a mensagem da Reforma continua necessária.

Sabemos que nas pessoas sem Deus imperam o subjetivismo e o existencialismo. A única regra de prática existente parece ser: "Comamos e bebamos porque amanhã morreremos." Verificamos que nas seitas existe uma multiplicidade de padrões. Livros e escritos são apresentados como se a sua autoridade fosse igual ou até superior à da Bíblia. A cena comum é a apresentação de novas revelações, geralmente de natureza escatológica e com características fluidas, contraditórias e totalmente duvidosas.

No meio eclesiástico liberal, já nos acostumamos a identificar o ataque constante à veracidade das Escrituras. Já vamos com mais de dois séculos de contestação sistemática da Palavra de Deus, como se a fé cristã verdadeira fosse capaz de subsistir sem o seu alicerce principal.

Mas é no campo evangélico que somos perturbados com os últimos ataques à Bíblia como regra inerrante de fé e prática. Ultimamente muitos chamados intelectuais têm questionado a doutrina que coloca a Bíblia como um livro inspirado, livre de erro. Podemos tomar como exemplo o caso do Fuller Theological Seminary. Esta famosa instituição evangélica foi fundada em 1947 sobre princípios corretos. Logo após o seu início, formulou-se uma declaração de fé que especificava: "…os livros do Velho Testamento e do Novo Testamento…, nos originais, são inspirados plenariamente e livres de erro, no todo e em suas partes…" Entretanto, em 1968, o filho do fundador, Daniel Fuller, que havia estudado sob Karl Barth, começou a questionar a inerrância da Bíblia, fazendo distinção entre trechos "revelativos" e trechos "não revelativos" das Escrituras. Foi seguido nessa posição pelo presidente, David Hubbard, e por vários outros professores, todos considerados evangélicos. 17 Logicamente não há critério coerente ou legítimo para fazer essa distinção. Subtrai-se da igreja o seu padrão, derruba-se um dos pilares da Reforma, e a igreja é retroagida a uma condição medieval de dependência dos especialistas que nos dirão quais as partes em que devemos crer realmente e quais as que devemos descartar como mera invenção humana.

No campo evangélico neopentecostal, a suficiência da Palavra de Deus é desconsiderada e substituída pelas supostas "novas revelações," que passam a ser determinantes das doutrinas e práticas do povo de Deus.

Em seu Capítulo I, Seção II, a Confissão de Fé de Westminster apresenta a mensagem inequívoca da Reforma do Século XVI, cada vez mais válida para os nossos dias. Ali a Bíblia é descrita como sendo a "regra de fé e de prática."

D. A Reforma Redescobriu na Palavra a Doutrina do Sacerdócio Individual do Crente – Hb 10.19-21

O sacerdócio individual do crente foi uma outra doutrina resgatada. Ela apresenta a pessoa de Cristo como único mediador entre Deus e os homens, concedendo a cada salvo "acesso direto ao trono" por intermédio do sacrifício de Cristo na cruz e pela operação do Espírito Santo no "homem interior." 18 O ensinamento bíblico, transmitido pela Reforma, eliminava os vários intermediários que haviam surgido ao longo dos séculos entre o Deus que salva e o pecador redimido. Na ocasião, esse era um ensinamento totalmente estranho à Igreja de Roma, que sempre se apresentou como tendo a palavra final de autoridade e interpretação das Escrituras.

Lutero rebelou-se contra o véu de obscuridade que a Igreja lançava sobre as verdades espirituais e levou os fiéis de volta ao trono da graça. Isso proporcionou uma abertura providencial no conhecimento teológico e religioso. Lutero sabia disso, mas também sabia que o acesso a Deus deveria estar fundamentado nas verdades da Bíblia, tanto assim que um de seus primeiros esforços, após a quebra com a Igreja Romana, foi a tradução da Palavra de Deus para a língua falada em seu país: o alemão.

O ensinamento do sacerdócio individual do crente foi o grande responsável pelo estudo aprofundado das Escrituras e pela disseminação da fé reformada. Levados a proceder como os bereanos, 19 os crentes verificaram que não dependiam do clero para o entendimento e aplicação dos preceitos de Deus e passaram a penetrar com determinação nas doutrinas cristãs.

A mensagem da Reforma continua sendo necessária hoje. A igreja contemporânea está multiplicando-se em quantidade de adeptos, mas é uma multiplicação estranha porque é acompanhada de uma preguiça mental quanto ao estudo. Parece que fomos todos tomados de anorexia espiritual, pois nos contentamos com muito pouco, nos achamos mestres sem estudar, nos concentramos na periferia e não no cerne das doutrinas, e ficamos felizes com o recebimento só do "leite" e não da "carne."

A mensagem da Reforma é necessária para que não venhamos a testemunhar a consolidação de toda uma geração de "cristãos analfabetos." Em vez de procurarmos coisas "enlatadas" e de deixar que apenas formas de entretenimento povoem nossas mentes e corações, devemos lembrar-nos constantemente da importância de "guardar a palavra no coração."

Precisamos nos aperceber de que o conteúdo da Palavra de Deus é verdade proposicional objetiva. Mas essa objetividade tem que ser acompanhada do nosso estudo e da nossa capacidade de compreensão, sob a iluminação do Espírito Santo, e da aplicação coerente dos ensinamentos dessa Palavra em nossas vidas.

E. A Reforma Apresentou, de Forma Clara e Inequívoca, o Conceito da Soberania de Deus — Salmo 24

Na ocasião da Reforma, as expressões de religiosidade tinham se tornado totalmente centralizadas no homem. Isso ocorreu principalmente pela grande influência de Tomás de Aquino na sistematização do pensamento católico romano. Abraçando as idéias de Pelágio, Aquino enfatizou fortemente o livre arbítrio do ser humano, desconsiderando a gravidade da escravidão ao pecado que o torna incapaz de escolher o bem, a não ser que a ele seja direcionado por Deus. Lutero reconheceu que a salvação se constituía em algo mais que uma mera convicção intelectual. Era, na realidade, um milagre da parte de Deus e por isso ele tanto pregou como escreveu sobre "a prisão do arbítrio." Costumamos atribuir a cristalização das doutrinas relacionadas com a soberania de Deus a João Calvino apenas, mas o ensinamento bíblico de Lutero traz, com não menor veemência, uma teologia teocêntrica na qual Deus reina soberanamente em todos os sentidos.

Hoje, a mensagem continua a ser necessária, pois o homem, e não Deus, permanece no centro das atenções. Mesmo dentro dos círculos evangélicos, nossa evangelização é efetivada tendo a felicidade do homem como alvo principal, e não a glória de Deus. Até a nossa liturgia é desenvolvida em torno de algo que nos faça "sentir bem," e não com o objetivo maior da glorificação a Deus. Nesse aspecto, deveríamos estar atentos à mensagem de Amós, que nos ensina (Am 4.4-5) que Deus não se impressiona com uma liturgia que não é direcionada a ele. 20 Nesse trecho vemos que a adoração realizada em Betel 21 e Gilgal 22 tinha várias características dos cultos contemporâneos:

1. Os locais eram suntuosos e famosos (Betel possuía belas fontes no topo da montanha).

2. A periodicidade dos cultos e possivelmente a freqüência era exemplar (reuniam-se diariamente).

3. As contribuições eram generosas, superando até os padrões de Deus (de três em três dias traziam as ofertas).

4. O louvor era abundante (sacrifícios de louvor eram ofertados; Am 5.23 e 6.5 também fala do estrépito dos cânticos e da transbordante música instrumental).

5. Havia bastante publicidade (as ofertas eram divulgadas e apregoadas).

6. Havia alegria e deleite geral nos trabalhos ("disso gostais," diz o profeta).

O resultado de toda essa adoração centralizada no homem foi a mão pesada de Deus em julgamento sobre aquela sociedade insensível (com aquele culto, as pessoas, dizia o profeta, "multiplicavam as suas transgressões"). Realmente, à semelhança da Reforma, precisamos resgatar a pregação da soberania de Deus e demonstrar essa doutrina na prática de nossas vidas e na de nossas igrejas.

Conclusão

Devemos reconhecer a Reforma como um movimento operado por homens falíveis, mas poderosamente utilizados pelo Espírito Santo de Deus para resgatar suas verdades e preservar a sua igreja. Não devemos endeusar os reformadores nem a Reforma, mas não podemos deixá-la esquecida e nem deixar de proclamar a sua mensagem, que reflete o ensinamento da Palavra de Deus aos dias de hoje. A natureza humana continua a mesma, submersa em pecado. Os problemas e situações tendem a repetir-se, até no seio da igreja. O Deus da Reforma fala ao mundo hoje, com a mesma mensagem eterna. Devemos, em oração e temor, ter a coragem de proclamá-la à nossa igreja.

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Notas:

1 D. M. Lloyd-Jones, Rememorando a Reforma (São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994) 2-5.
2 O Rev. Sabatini Lalli compila várias dessas distorções em seu livro Lutero: Cinco Séculos Depois (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1983) 4-5.
3 Plínio Corrêa de Oliveira, Folha de São Paulo (10.01.1984), 2. O autor cita uma carta de Lutero a Melanchton para provar o seu ponto, na qual Lutero reclama da sua preguiça. Provavelmente as colocações expressam o profundo sentimento de incapacidade perante as grandes tarefas que confrontam os cristãos verdadeiros e responsáveis. O autor parece desconhecer que enquanto Lutero se entregava "ao ócio e à moleza," como diz, ele entre outras coisas traduziu a Bíblia em sua totalidade.
4 Jornal de Brasília—Caderno Internacional (10.11.1983), 11, e Isto É (09.11.1983), 37.
5 Time (24.03.1967), citado por Dr. Allen A. MacRae em Luther and the Reformation (New York: American Council of Christian Churches, 1967) 2.
6 MacRae, Luther and the Reformation, 2.
7 Ibid.
8 Time (24.03.1967), citado em The Christian News (N. Haven: Lutheran News, 1983); (27.06.1983), 18.
9 Reconhecemos que algumas dessas ações possuem validade moral, como, por exemplo, levantar a voz conjunta da sociedade contra o crime do aborto, contra a promiscuidade defendida pelos meios de comunicação, etc.
10 O cristão que "…experimentou a conversão…" deve ser "…continuamente respeitado... em sua decisão acerca de compromisso e participação comunitária…" Também, "…os que são convertidos… devem receber plena liberdade e respeito para analisar e decidir em que comunidade irão viver a sua nova vida em Cristo."
11 Transcritos no Western Reformed Seminary Journal 2/2 (verão 1995) 15.
12 Encíclica Evangelium Vitae, pt. 81.
13 O texto completo das 95 teses em inglês pode ser obtido através da Internet, no seguinte endereço: http://www.bibleclass.com/lib/95.htm.
14 Termo utilizado na igreja desde Orígenes (Escola de Alexandria), atacado por Nestório no quinto século, mas aprovado e acolhido pelos Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451). Posteriormente, a Igreja Católica veio a distorcer o significado de "Mãe de Deus" — em vez de representar uma defesa da divindade de Cristo, o termo passou a expressar uma situação privilegiada de Maria em poder e essência, como objeto próprio de adoração e fonte de poder.
15 Lloyd-Jones, Rememorando a Reforma, 8.
16 Ibid.
17 Harold Lindsell, The Battle for the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1976) 106-121. Exemplos de outros autores famosos (considerados evangélicos) que questionam a inerrância: Paul K. Jewett e George Eldon Ladd.
18 Ef 2.18 e 3.16.
19 At 17.11.
20 Várias mensagens expositivas sobre os alertas de Amós, e a sua aplicabilidade aos nossos dias, têm sido proferidas pelo Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes (1995-1997), das quais alguns destes pontos foram extraídos.
21 Betel (casa de Deus): cidade em Samaria, lugar de adoração dos cananeus (El, Baal). Contrasta com o templo dos judeus, chamado de Beth Yaweh, a casa de Jeová.
22 Gilgal: existem várias na Bíblia (pelo menos seis). Esta deve ser a de Js 4.19, Jz 2.1 e 3.19, que ficava perto de Jericó, chegando a abrigar a arca do concerto (Js 18.1). Outros acham que seria a de 2 Rs 2.1-4. Saul utilizou a primeira como base de operações contra os amalequitas. Os 12.11 indica que virou local de sacrifícios. Etimologicamente, pode ter seu significado ligado a um "círculo de pedras."


18 outubro 2020

O Poder do Evangelho

Por Phillip Melanchthon (1497-1560) 

Há pessoas as quais a consciência tem terrificado através do convencimento do pecado, que seriam seguramente dirigidas ao desespero, a condição habitual dos condenados, se elas não fossem sustentadas e encorajadas pela promessa da graça e misericórdia de Deus, comumente chamado de evangelho. Se a consciência afligida acredita na promessa da graça em Cristo, ela é ressuscitada e estimulada pela fé, como os exemplos seguintes revelarão maravilhosamente.

Em Gênesis, capítulo 3, o pecado, arrependimento e justificação de Adão são descritos. Depois de Adão e Eva haverem pecado, e estando procurando cobertas para a nudez deles - pois nós, os hipócritas, temos o hábito de aliviar nossas consciências fazendo compensações - eles foram chamados para prestarem contas ao Senhor; mas a Sua voz era insuportável.

Debaixo destas condições, nem cobertas nem pretextos desculparam o pecado deles. Condenados e culpados, a consciência cai prostrada quando é confrontada diretamente com o pecado pela voz de Deus. Eles fogem, e Adão explica a causa da fuga deles quando ele diz: " Eu ouvi a Tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo e me escondi." (Gn. 3:10). Note a confissão e o reconhecimento pela consciência. Enquanto isso, Adão cai em profundo pesar até que ele ouve a promessa de misericórdia, de que, através do descendente de sua mulher, a cabeça da serpente seria esmagada (Gn. 3:15). Até mesmo o fato de que o Senhor os vestiu, fortaleceu suas consciências, e é inegavelmente um sinal da encarnação de Cristo, porque a Sua carne, em última análise ,é que cobre nossa nudez e destrói a confusão de consciências trêmulas sobre as quais os insultos dos acusadores tem caído (Sl.69).

Nós recordamos como Davi foi quebrantado pela voz do profeta Natã. E ele certamente teria perecido se não tivesse ouvido o evangelho imediatamente: " Também o Senhor te perdoou o pecado; não morrerás " (II Sm. 12:13). O Espírito de Deus tem nos mostrado ricamente o modo como opera através da Sua ira e da Sua misericórdia. Que expressão mais evangélica pode ser concebida do que esta: " O Senhor te perdoou o pecado "? Não é este a suma do evangelho ou da pregação no Novo Testamento: o pecado foi perdoado? Você pode acrescentar a estes exemplos muitas histórias dos evangelhos. Lucas 7:37-50 conta sobre a mulher pecadora que lava os pés do Senhor; Ele a consola com estas palavras: " Teus pecados estão perdoados " (v. 48). E o que é mais conhecido do que a história narrada em Lucas, capítulo 15, do filho pródigo que confessa o seu pecado? Como amorosamente seu pai o recebe, abraça, e o beija! Em Lucas 5:8 Pedro, admirado pelo milagre e, o que é mais importante, tocado em seu coração, exclama: "Aparta-Te de mim, porque sou um homem pecador, ó Senhor". Cristo o consola e o restaura dizendo: "Não tenhas medo, ... " (v. 10). Destes exemplos acredito que possa ser entendido a diferença existente entre a lei e o evangelho, e entre o poder do evangelho e o da lei. A lei terrifica; o evangelho consola. A lei é a voz de ira e morte; o evangelho é a voz de paz e vida, e para resumir, "a voz do noivo e a voz da noiva," como o profeta diz (Jr. 7:34). E aquele que é encorajado pela voz do evangelho e confia em Deus já está justificado. Cristãos sabem bem quanta alegria e satisfação a consolação traz. E aqui situam-se, apropriadamente, aquelas palavras de alegria que os profetas usam para descrever Cristo e a Igreja. Is. 32:18: "O meu povo habitará em moradas de paz, em moradas bem seguras, e em lugares quietos e tranquilos". Is. 51:3: "regozijo e alegria se acharão nela, ações de graça e sons de música". Jr. 33:6: "e lhes revelarei abundância de paz e segurança. Sl. 21:6: " Pois o puseste por bênção para sempre, e o encheste de gozo com a tua presença". Sl. 97:11: Ä luz difunde-se para o justo, e a alegria para os retos de coração".

Mas por que amontoar argumentos quando é óbvio, através da promulgação da lei e do advento de Cristo, o que significa o poder da lei e o do evangelho? Assim Êxodo, capítulo 19, descreve com que horrível espetáculo a lei foi dada. Assim, da mesma maneira que o Senhor terrificou a Israel naquele momento, as consciências individuais são atormentadas pela voz da lei, e eles exclamam junto com o Israel: "Não fale Deus conosco, para que não morramos" (Ex. 20:19). A lei exige o impossível, e a consciência, condenada pelo pecado, é assaltada em todas as direções. Nesta condição, medo e confusão perturbam a consciência de tal forma, que nada, nem ninguém pode trazer-lhe alívio, a não ser que Aquele que a acusou, retire a acusação. Alguns buscam consolação através de seus esforços, trabalhos, e atos de apaziguamento.

Mas estes não realizam mais do que Adão realizou com suas folhas de figo. Assim são aqueles que se ornam contra o pecado confiados no poder do seu próprio querer (arbítrio). Os fatos atuais ensinam que eles logo caem ainda mais miseravelmente. "O cavalo não garante a vitória; a despeito de sua grande força, a ninguém pode livrar " (Sl. 33:17).

"Presta-nos auxílio na angústia, pois vão é o socorro homem" (Sl. 108:12)!

Por outro lado, o advento de Cristo é descrito pelo profeta Zacarias como lemos em 9:9: "Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, ... ". Primeiro, quando o profeta dá a ordem para regozijar, ele ensina que a palavra deste Rei é diferente da lei; além disso, ele expressa a alegria na consciência de um jubiloso a ouvir a palavra de graça. Em seguida, não há tumulto, mas tudo está tranquilo, que o leva a entender que Ele é o autor da paz, não da ira. Esta é aquela característica que extraímos do termo "humilde", que o Evangelista usa, para explicar Sua mansidão. Isaías tem a mesma ideia em 42:3: "não esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que fumega".

De modo similar, o apóstolo contrasta a face de Moisés com a de Cristo em II Co. 3:13. Moisés amedrontou as pessoas ao olharem para o seu semblante. Pois quem poderia aguentar a majestade do julgamento divino quando até mesmo o profeta implora isto: "Não entres em juízo com o teu servo" (Sl. 143:2)? Quando os discípulos vêem a glória de Cristo no Monte da Transfiguração, uma alegria nova e maravilhosa inunda seus corações a tal ponto, que Pedro, esquecendo-se de si mesmo, exclama: "Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três tendas" (Mt. 17:4). Aqui está uma visão da graça e misericórdia de Deus. Da mesma maneira que um olhar à serpente de bronze salvou os homens no deserto, assim também, eles são salvos se fixarem os olhos da fé na cruz de Cristo (Jo. 3:14.). Aí está o porque de os apóstolos, de modo adequado, chamarem sua mensagem, cheia de alegria, de evangelho ou boas novas. Os gregos também comumente designavam de evangelho, seus anúncios e elogios públicos de atos valorosos.

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Nota sobre o Autor: Philip Melanchthon foi um dos mais importantes nomes entre a primeira geração de reformadores alemães. Este artigo, "O Poder do Evangelho" é uma seção do Loci Communes Theologici, um dos primeiros exemplos da dogmática protestante (sistematização do pensamento da Reforma).

Melanchthon representou um papel importante durante a Reforma, não só como amigo e confidente de Martinho Lutero, mas também como o representante do lado protestante durante Congressos e Conversas Religiosas. Além disso, proveu o impulso decisivo para Lutero traduzir a Bíblia.


17 outubro 2020

Estudo sobre Predestinação

I. Introdução 

Dentre as doutrinas contidas na Bíblia, a predestinação é uma das mais difíceis de serem abordadas. Creio que poderíamos identificar três razões para essa dificuldade:

1. Rejeição em função de nossa natureza pecaminosa – Nossa natureza, influenciada pelo pecado, traz uma tendência de rejeição da exaltação do Deus Soberano, ao mesmo tempo em que passa a considerar o homem superior àquilo que ele realmente é. Nesse sentido, tendemos nos apresentar numa posição de autonomia e superioridade, contrariando o que a Palavra de Deus nos revela sobre o nosso ser. As pessoas fazem um grande esforço para se desvincularem da esfera de autoridade divina, e para tirarem Deus da regência de suas vidas e do seu destino.

2. Distorção, por insuficiência de base bíblica – Às vezes, a doutrina é apresentada, ou absorvida com um exame superficial da base bíblica. Se todos os ângulos não forem estudados, ou se recorrermos mais ao “eu acho”, “eu penso”, do que a uma aceitação sem preconceitos do que a Bíblia revela, sobre as ações e planos do Deus soberano, saímos com uma idéia distorcida dessa doutrina.

3. Diluição, para facilidade de compreensão – Muitas vezes, temos a idéia de que a veracidade ou não de uma doutrina está baseada na nossa capacidade de compreensão total da mesma, esquecendo-nos de que nossa compreensão é finita, imperfeita e limitada. A diluição, ao nível de nossa capacidade, traz uma série de problemas secundários que tornam a doutrina, no cômputo final, diferente da apresentação bíblica e de impossível aceitação, mediante um estudo sério da questão.

Quando estudarmos a predestinação teremos, portanto, de estar cientes das dificuldades do estudo mas, se tivermos seriedade e humildade para aprender o que Deus nos revelar em sua palavra, devemos ter a disposição de considerar:

1. Os dados bíblicos – examinarmos o maior número possível de passagens.

2. A necessidade de não rejeitar os conceitos bíblicos simplesmente porque estes podem fugir à nossa compreensão, ou experiência, mas deixá-los permanecer em toda a sua objetividade e lógica transcendental, gradativamente, pela ação do Espírito, penetrando em nossas convicções.

3. O testemunho histórico da Igreja – ele não determina doutrina, mas o seu estudo é relevante para vermos como Deus tem guiado a sua igreja, e para discernirmos a diferença entre inovações – ventos de doutrina e as doutrinas verdadeiras provadas no cadinho do tempo e da história eclesiástica.

4. O fato de que, quanto mais aprendermos e exaltarmos a pessoa de Deus, mais cresceremos espiritualmente e mais chegaremos perto de nossa finalidade que é a de glorificarmos a ele, em todas as nossas ações.

II. O Plano de Deus 

No seu relacionamento com o homem, Deus tem um PLANO, que é mais do que um mero MAPA, constituído de caminhos alternativos, para se chegar a dois destinos finais. A Bíblia nos diz que Deus tem um plano – este plano é:

A. Eterno. Is 46.9 e 10, diz: “ Lembrai-vos das coisas passadas da antiguidade: que eu sou Deus, e não há outro, eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; que desde o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a antigüidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (veja também: 2Tm 1.9; Sl 33.11; Is 37.26; Jr 31.3; Mt 25.34; 1 Pe 1.20; Sl 139.16; 2 Ts 2.13; At 15.17,18).

B. Imutável. Tg 1.17-18, diz: “ Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança...” (veja também: Is 14.24,27; Is 46.10,11; Nm 23.19; Ml 3.6).

C. Inclui os atos futuros dos homens. Isso pode ser visto em todas as profecias da Bíblia, mas considere, especialmente, Mt 20.18 e 19: “Eis que subimos para Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas. Eles o condenarão à morte. E o entregarão aos gentios para ser escarnecido, açoitado e crucificado; mas, ao terceiro dia, ressurgirá”; e Lc 22.22: “Porque o Filho do Homem, na verdade, vai segundo o que está determinado, mas ai daquele por intermédio de quem ele está sendo traído” (veja também: Dn 2.28 e Jo 6.64).

D. Inclui os eventos não importantes, ou ocasionais. Como lemos em Pv 16.33: “A sorte se lança no regaço, mas do SENHOR procede toda decisão” (veja também: Jn 1.7; At 1.24,26; Mc 14.30; 1 Rs 22.28-34).

E. Especifica a certeza e a inevitabilidade dos eventos. Já vimos isso em Lc 22.22, acima, e o mesmo conceito está presente em Jo 8.20: “... ninguém o prendeu, porque não era ainda chegada a sua hora” (veja também: Gn 41.32; Hq 2.3; Mt 24.36; Lc 21.24; Jr 15.2; Jó 14.5; Jr 27.7).

F. Até os atos pecaminosos do homem estão incluídos (sem que Deus seja o autor de pecado). Lemos em Gn 45.8, que as ações malévolas dos irmãos de José faziam parte do plano de Deus: “Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, e sim Deus, que me pôs por pai de Faraó, e senhor de toda a sua casa, e como governador em toda a terra do Egito”. Deus, entretanto, não é o autor do pecado, como nos ensina Tg 1.13 e Dt 32.4: “Eis a Rocha! Suas obras são perfeitas, porque todos os seus caminhos são juízo; Deus é fidelidade, e não há nele injustiça; é justo e reto” (veja também: Sl 5.4; Tg 1.13; Gn 50.20; Mt 21.42; At 3.17-18; Am 3.6).

III. O livre arbítrio e a liberdade 

O nosso conceito de liberdade e de livre arbítrio é muitas vezes identificado com a execução de ações erráticas, aleatórias, sem nenhum enquadramento em um modelo comportamental ou sem nenhuma ligação com a natureza e características intrínsecas das pessoas. Será que é mesmo assim? Vamos repensar um pouco os nossos conceitos, partindo de um exame da doutrina bíblica sobre a pessoa de Deus:

A. DEUS é livre?


1. Certamente que sim!—Ele é livre em um grau muito mais alto do que qualquer outro ser. Veja a Sua liberdade expressa no Sl 115.3: “ No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” ; e em 1 Co 12.11: “Mas um só e o mesmo Espírito realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um...”.

2. Isto significa que suas ações são incertas? Que ele pode mudar como um pêndulo? Pode ele quebrar o concerto com o Seu povo? Não! Por que não? Existe alguma compulsão EXTERNA obrigando-o a isto?

3. Certamente que não! Não existe nenhum agente ou força externa exercendo pressão ou autoridade sobre Deus, que é Soberano e está acima de tudo e todos.

4. ENTRETANTO, é impossível para Deus mentir! Tito 1.2 fala do “... Deus que não pode mentir... ”. Por que? Porque isto seria contrário à sua natureza e aos seus atributos! O Breve Catecismo de Westminster, responde a pergunta 4 (“Quem é Deus?”) com uma descrição dos atributos de Deus:

Deus é Espírito: Infinito Ser, Sabedoria, Eterno Poder, Justiça, Imutável em sua Bondade e Verdade.

5. Portanto, nunca, na menor de Suas ações, Ele se desviará daquele padrão de perfeição que Sua própria natureza determina.

B. E o HOMEM, ele é livre?

1. SIM, o homem é livre no sentido de que suas escolhas não são determinadas, em linhas gerais, por nenhuma compulsão externa. Podemos dizer que ele tem LIVRE AGÊNCIA.

2. ENTRETANTO, suas ações são determinadas pela natureza de seu próprio caráter, e nós sabemos que esta natureza é só pecado (Rm. 3.10-23). Neste sentido, ele não tem LIVRE ARBÍTRIO de escolher o bem, pois é escravo do pecado. Este “livre arbítrio” foi perdido com a queda, em Adão.

3. Mesmo não possuindo “livre arbítrio”, definido como a possibilidade de escolha do bem, a “liberdade” que possui, definida como livre agência, não é incompatível com o enquadramento do Homem nos planos divinos. Deus, soberanamente, executa os seus desígnios ATRAVÉS da vontade das suas criaturas (veja os seguintes trechos: Fp 2.13; Pv 20.24; 2 Co 3.5; Jr 10.23; Rm 9.16 e Tg 4.13-15).

Talvez não compreendamos COMO Deus faz isso – como Ele preserva a livre agência, mas executa com precisão os Seus planos. Mas a aceitação dos pontos 2 e 3, acima, é a chave para entendermos melhor a doutrina da soberania de Deus e a própria predestinação. Não é negando a existência do plano de Deus, nem diminuindo a sua soberania, que retratamos a realidade expressa na Bíblia sobre essas questões. Não possuímos “livre arbítrio”, mas Deus é infinitamente soberano e onipotente para executar seus planos, sem violação da LIVRE AGÊNCIA que nos concedeu.

IV. Deus realmente determina as ações do homem? 

Cremos que sim. Na execução do seu plano soberano ele determina “tudo que acontece”, mas muitos têm dificuldade na aceitação deste fato. Na realidade, temos apenas duas posições possíveis, ou Deus determina as ações do Homem, ou Ele não determina estas e o homem é completamente autônomo.

Concordamos que este é um ponto de difícil compreensão. Alguns tentam contornar este problema dizendo que Deus não determina, na realidade, mas como Ele tudo conhece de antemão, Ele “determinaria”, ou “predestinaria”, as coisas que Ele sabe que irão acontecer. Ou seja, a sua determinação é dependente do Seu conhecimento prévio, de sua onisciência. Com isso, procura-se deixar as pessoas “livres”.

Será que é mesmo assim e que esta posição resolve o problema? Cremos que não! Querer resolver o problema da “liberdade humana” ancorando a soberania de Deus e a sua predestinação na onisciência dele, traz uma solução apenas aparente mas não real. A Confissão de Fé de Westminster, em seu Cap. III, seção 2, diz que Deus “... não decreta coisa alguma por havê-la previsto como futura”.

Vejamos a posição contrária: se ele determina, simplesmente porque conhece de antemão (como, por exemplo, falando-se das profecias registrada na Palavra de Deus), na hora em que ele houvesse determinado, essas situações se tornariam fixas e imutáveis. Dificilmente um cristão dirá que Deus não é soberano, ou que ele não cumpre o que profetizou. Sendo Ele soberano as coisas serão cumpridas, como previamente registradas. Como fica, então, a defesa da liberdade irrestrita das pessoas, do “livre arbítrio”, neste sentido? E se os homens, segundo esse conceito, que são os agentes diretos do cumprimento das determinações que Deus colocou no seu plano (apenas “porque Ele já conhecia”), na última hora resolverem “mudar de idéia”, como fica esse plano de Deus? Deus também ficará mudando, à mercê das determinações do homem, e até quando?

Vemos que procurar escapar à imensa evidência bíblica que ensina a irrestrita soberania de Deus, o seu plano sábio e sua onipotência no cumprir tudo que antes predeterminou, com o sofisma de que Deus realmente não determina, mas apenas conhece previamente, não traz qualquer pretensa “liberdade” ao homem, a não ser que se pretenda reduzir o poder de Deus. A seguir, temos um diagrama com as diferentes alternativas, posições e algumas referências bíblicas, mostrando como podemos organizar os dados das Escrituras e, até onde levam alguns pensamentos e deduções:

Estudo sobre a Predestinação


V. A Predestinação 

Dentro do contexto bíblico, que estamos estudando, a Predestinação é simplesmente um ponto específico deste plano de Deus. O nosso Deus é soberano e não existe uma área sequer do universo, da nossa vida e existência, que não esteja sob esta soberania e regência, inclusive a questão da salvação de almas.

A. Definição: Poderíamos definir a Predestinação como sendo:

O aspecto da pré-ordenação de Deus, através do qual a salvação do crente é considerada efetuada de acordo com a vontade de Deus, que o chamou e o elegeu em Cristo, para a vida eterna, sendo a sua aceitação VOLUNTÁRIA, da pessoa e do sacrifício de Cristo, uma CONSEQUÊNCIA desta eleição e do trabalho do Espírito Santo, que efetiva esta eleição, tocando em seu coração e abrindo-lhe os olhos para as coisas espirituais.

B. A Fonte da Predestinação: É a Soberana Vontade de Deus. No capítulo 6 do Evangelho de João, temos três versículos pertinentes: 37 – “Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora”; 44 – “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia”; e 65 – “E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido” (veja também – Ef 1.4, 5 e 11; Rm 9.11, 16).

C. A Causa da Predestinação: É a misericórdia infinita de Deus e a manifestação de sua glória. Rm 9.23 diz – “... a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão” (veja também – Rm 11.33; Ef 1.6 e Jo 3.16).

D. Os Objetos da Predestinação: Pessoas pecadoras. Note Jo 1.12 e 13 – “ Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (veja também esses versos, todos em João – 5.21; 6.65; 10.26 e 27; 12.37-41; 15.16; 17.6-8).

E. Os Meios para a concretização da Predestinação:

1. O chamado externo – Mt 22.14 “ Porque muitos são chamados, mas poucos, escolhidos” .

2. A resposta ao chamado interno (crença) – At 13.48 “... e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna”.

VI. A Doutrina da Predestinação na História 

Vamos dar uma olhada “relâmpago” na acolhida, exposição e reflexos das doutrinas relacionadas com a Soberania de Deus, com Seus decretos e, especialmente, com a Predestinação através da história:

A. Entre os Judeus: Os Judeus aceitavam normalmente a idéia de Deus, expressa no Antigo Testamento, que o apresenta como estando em controle de tudo e de todos, dirigindo os passos e os destinos dos homens, como indica Pv 16.33 – “ A sorte se lança no regaço, mas do SENHOR procede toda decisão” (veja também – Am 3.5 e 6; Is 45.7 e Jo 9.2).

B. Na História da Igreja Neo-testamentária:

1. Ensinada por Jesus – Jo 5.21; 6.65; 10.27; 15.16.

2. Explanada por Paulo – Rm 9.1-16; Ef 1.4,5-11.

3. Registrada por João, Lucas e outros: Jo 1.12,13; At 13.48

4. Aceita pelos Patriarcas da Igreja, como por exemplo: Policarpo, Irineu e Eusébio.

5. Contestada pelos ramos heréticos da Igreja, dos quais o maior expoente, nos primeiros séculos, foi PELÁGIO, que defendia o livre arbítrio irrestrito, em oposição a AGOSTINHO, que defendeu e enalteceu a Soberania de Deus em todas as esferas, principalmente na salvação de almas.

6. Esquecida pela Igreja Católica, na medida em que ela foi se formando entrelaçada ao Estado, após a regência do Imperador Constantino. Este esquecimento foi paralelo ao de outras doutrinas cardeais da Bíblia, que foram sufocadas e suplantadas pelas tradições e conveniências da Igreja, concretizando-se no humanismo pragmático de Tomás de Aquino.

7. Reaparecida em todos os movimentos Pré-reforma que desabrocharam na Idade Média, sendo uma constante, paralelamente às outras doutrinas chaves da Bíblia, entre os Valdenses (seguidores de Waldo), os Hussitas (seguidores de João Huss) os Lolardos (seguidores de Wyclif), etc.

8. Revivida por Lutero, na Reforma do Século XVI, que despertando para as doutrinas fundamentais que haviam sido mumificadas pela Igreja Católica, a defende e a proclama, principalmente em seu livro: “De Servo Arbítrio” (A Prisão do Arbítrio), escrito em resposta a Erasmo de Roterdã.

9. Constante em todos os movimentos Pós-reforma, como por exemplo nos escritos e tratados de Melânchton, Zuínglio, João Knox, etc.

10. Sistematizada, em seus ensinamentos, por João Calvino, que reapresenta e sistematiza a posição de Paulo e de Agostinho em seu tratado “Institutas da Religião Cristã”, e em outros livros e comentários bíblicos que escreveu, fundamentando a posição da Igreja Protestante contra os Arminianos.

11. Atacada apenas, nesta ocasião, por Jacobus Armínius e seus seguidores, que assumiram a posição de Pelágio (vide item 5, acima), levando ao posicionamento contrário, oficial, conhecido como os cânones de Dort (Dordrecht) – que resume a doutrina reformada sobre a soberania de Deus na salvação , refletindo, igualmente a interpretação bíblica dessas doutrinas contidas no Catecismo de Heildelberg e na Confissão de Fé Belga.

12. Constituída no posicionamento oficial de quase todas as denominações que se afirmaram após a Reforma:

PRESBITERIANOS — A apresentam na Confissão de Fé de Westminster, principalmente nos capítulos V, VIII, IX, X, XI e em várias perguntas e respostas dos Catecismos (Breve e Maior).

BATISTAS — Estes adotaram a Confissão de Fé de Londres (1689, na Inglaterra e 1742 nos Estados Unidos), que é semelhante em tudo à de Westminster, exceto na forma prescrita para o batismo.

CONGREGACIONAIS — Na sua doutrina soteriológica se assemelhavam aos Presbiterianos. Alguns puritanos (caracterizados pela convicção plena da soberania de Deus) eram presbiterianos, outros (como Roger Williams, na América) eram batistas, mas muitos eram congregacionais, como Jonathan Edwards.

ANGLICANOS — Na primeira reestruturação desta Igreja, sob Edward VI, quando foram escritos os 42 Artigos de Fé, a soberania de Deus e a posição Calvinista, sobre a salvação, foi retratada e defendida.

13. Presente nas mensagens dos grandes pregadores dos séculos 17 a 19, tais como CHARLES SPURGEON—O grande pastor batista, que muito escreveu sobre eleição e soberania de Deus.

J. EDWARDS e GEORGE WHITEFIELD, nos EEUU, e muitos outros de tradição puritana.

14. Considerada como o esteio da Igreja e da Nação Holandesa, durante séculos (na forma mais abrangente da Soberania de Deus – pois penetrou a vida plena da nação, inclusive na política), o que pode ser constatado nos movimentos missionários e de catequização deflagrados pelos holandeses nos séculos 16 e 17 e, mais contemporaneamente, nas vidas e escritos de KUYPER, BAVINCK e outros ilustres homens de Deus, daquele país.

15. Considerada a mola mestra dos movimentos missionários desencadeados pela Igreja Norte Americana, pois constituía a doutrina explanada pelos grandes doutores, tais como Charles Hodge, Benjamin Warfield, Dabney e tantos outros. Neste sentido, esteve presente no Brasil desde o início da Igreja Presbiteriana, pois era a doutrina dos antigos missionários (a começar com Simonton – discípulo de Hodge) e dos primeiros pastores formados por estes, tais como o Dr. Antônio Almeida e muitos outros.

16. Infelizmente, esquecida e relegada a segundo plano por quase todo o mundo evangélico contemporâneo, mais preocupado que está com os “modismos” da época, em vez de concentração nas raízes sólidas da doutrina bíblica e na aplicação destas às pessoas, em todas as suas atividades. Este esquecimento foi provavelmente causado pelo advento do Dispensacionalismo, há cerca de 150 anos, que, popularizado pela Bíblia de Scofield, tomou conta da mensagem e da teologia da maioria das denominações, até da Igreja Presbiteriana, no maior reavivamento de Pelagianismo e Arminianismo desde a aparição destas correntes.

17. Necessária no ensinamento das Igrejas, que deveriam rever os seus Padrões de Doutrina, achegando-se cada vez mais à Palavra, para que a posição de Deus venha a ser exaltada, e para que o Evangelho puro possa ser pregado, para a glória do Seu Nome.

Acreditamos, portanto, que a Doutrina da Predestinação é bíblica; harmoniza-se com o todo da revelação da pessoa de Deus, conforme as Escrituras; e tem sido sustentada pelo testemunho dos segmentos fiéis da igreja de Cristo. Em artigo próximo, examinaremos algumas objeções contra a doutrina da predestinação e concluiremos este estudo.