22 setembro 2020

Piedade é o requisito para se conhecer a Deus

Por João Calvino 

Portanto, de fato entendo como conhecimento de Deus aquele em virtude do qual não apenas concebemos que Deus existe, mas ainda apreendemos o que nos importa dele conhecer, o que lhe é relevante à glória, enfim, o que é proveitoso saber a seu respeito. Ora, falando com propriedade, nem diremos que Deus é conhecido onde nenhuma religiosidade há, nem piedade. E aqui ainda não abordo essa modalidade de conhecimento pela qual os homens, em si perdidos e malditos, apreendem a Deus como Redentor, em Cristo, o Mediador. Ao contrário, estou falando apenas desse conhecimento primário e singelo, a que nos conduziria a própria ordem da natureza, se Adão se conservasse íntegro.

Ora, se bem que nesta ruinosa situação do gênero humano já ninguém sentirá a Deus, seja como Pai, seja como autor da salvação, seja como de qualquer maneira propício, até que Cristo se interponha como agente mediador para apaziguá-lo em relação a nós, todavia uma coisa é sentirmos que Deus, como nosso Criador, nos sustenta com seu poder, nos governa em sua providência, nos provê em sua bondade e nos cumula de toda sorte de bênçãos; outra, porém, é abraçarmos a graça da reconciliação que nos é proposta em Cristo.

Portanto, uma vez que o Senhor se mostra, em primeiro lugar, tanto na estrutura do mundo, quanto no ensino geral da Escritura, simplesmente como Criador, e então na face de Cristo [2Co 4.6] como Redentor, daí emerge dele duplo conhecimento, de que se nos impõe tratar agora do primeiro. O outro se seguirá, na devida ordem. 

Mas, embora nossa mente não possa apreender a Deus sem que lhe renda alguma expressão cultual, não bastará, contudo, simplesmente sustentar que ele é um e único, a quem importa ser de todos cultuado e adorado, se não estamos também persuadidos de que ele é a fonte de todo bem, para que nada busquemos de outra parte senão nele.

Eu o recebo nestes termos: não só que uma vez ele criou este mundo, e de tal forma o sustém por seu imenso poder; o regula por sua sabedoria; o preserva por sua bondade; rege com sua justiça e equidade especialmente ao gênero humano; suporta-o em sua misericórdia; guarda-o em sua proteção; mas, ainda que em parte alguma se achará uma gota ou de sabedoria e de luz, ou de justiça, ou de poder, ou de retidão, ou de genuína verdade, que dele não emane e de que não seja ele próprio a causa; de sorte que aprendamos a realmente dele esperar e nele buscar todas essas coisas; e, após recebidas, a atribuir-lhes com ação de graças.

Ora, este senso dos poderes de Deus nos é mestre idôneo da piedade, da qual nasce a religião. Chamo piedade à reverência associada com o amor de Deus que nos faculta o conhecimento de seus benefícios. Pois, até que os homens sintam que tudo devem a Deus, que são assistidos por seu paternal cuidado, que é ele o autor de todas as coisas boas, daí nada se deve buscar fora dele, jamais se lhe sujeitarão em obediência voluntária. Mais ainda: a não ser que ponham nele sua plena felicidade, verdadeiramente e de coração nunca se lhe renderão por inteiro.

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Fonte: As Institutas ou Tratado da Religião Cristã, vol. 1, Cap. II, 1.


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