29 novembro 2020

O Que Significam os Cinco Pontos do Calvinismo? Uma explicação simples da TULIPA

Por Gabriel Reyes-Ordeix

Aproximadamente 100 anos depois da Reforma Protestante ter explodido na Europa, em 1517 ocorreu o Sínodo de Dort na Holanda. A razão para este concílio foi discutir o crescimento de uma doutrina nova e diferente na Igreja Reformada Holandesa: o arminianismo. A agenda da discussão incluiu cinco temas fundamentais: a depravação total do homem, a eleição incondicional, a expiação limitada, a graça irresistível e a perseverança dos santos. No final do Sínodo, Jacó Arminio e seus ensinos haviam sido oficialmente rejeitados pela Igreja.

Destes cinco pontos é que vem o acróstico TULIP (“tulipa” em inglês), que abrange a teologia reformada de uma forma simples e concreta:

T: Depravação Total (Total Depravity)
U: Eleição Incondicional (Unconditional Election)
L: Expiação Limitada (Limited Atonement)
I: Graça Irresistível (Irresistible Grace)
P: Perseverança dos Santos (Perseverance of the Saints)

Estes cinco pontos também são conhecidos como os “cinco pontos do Calvinismo” ou “Doutrinas da Graça”.

A Bíblia, nossa única autoridade

Como cristãos, não nos atemos a nada além da Palavra do Senhor, e somente a Bíblia é a nossa autoridade suprema. É à luz dela que veremos cada um desses pontos. Nós também seremos ajudados por nossos irmãos do cristianismo histórico dos anos 1600. Tanto os Cânones de Dort (1618) quanto a Confissão de Fé de Westminster (1646) falam sobre esses cinco pontos.

Depravação total

Toda a humanidade foi afetada, danificada e distorcida pela entrada do pecado no mundo. Isso não significa que o homem seja tão ruim quanto poderia ser, mas que todos os aspectos de nossa vida são afetados pelo pecado, de modo que estamos mortos em nossas transgressões e pecados (Ef 2.5), e nós mesmos não podemos mudar a nossa situação (Cl 2.13).

Os Cânones de Dort nos dizem: “Portanto, todos os homens são concebidos no pecado, e ao nascer como filhos da ira, incapazes de qualquer bem são ou salvífico, e inclinados ao mal, mortos em pecados e escravos do pecado; e eles não querem e nem podem voltar a Deus, nem corrigir sua natureza corrompida, e nem melhorá-la por si mesmos, sem a graça do Espírito Santo, que é aquele que regenera” (Cânone de Dort, capítulo 3-4, IIL).

As doutrinas do pecado e a depravação total do homem são mais do que bem representadas em ambos os testamentos (cf. Is 53.6; 2 Cr 6.36; Rm 3.9-12; 1Jo 1.8,10; Mc 10.18; Mq 7.2-4; Jr 17.9; Mt 15.19; Gn 6.5, 8.21).

Eleição incondicional

Deus escolhe a quem Ele quer escolher. Este é um dos pontos de maior conflito, entretanto, ele está intimamente ligado ao anterior. Uma vez que estamos mortos — literalmente incapazes de tomar qualquer tipo de decisão para nos ajudar — a única saída da nossa morte espiritual é que Deus nos tire dela (2Tm 1.9). Se realmente cremos que somos maus, não temos o direito de reclamar que Deus exerça Sua graça soberanamente.

A eleição incondicional significa simplesmente que Deus escolhe dar a vida eterna sem ter visto nada de bom nos eleitos. João 15.16 não nos deixa dúvida: “Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros e vos designei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça”; do mesmo modo, vemos muito sobre isso na teologia paulina (cf. Rm 9.15-16; Ef 1.4-5; 1Ts 1.4-5; 2Ts 2.13; 1Co 1.27-29).

Nossos irmãos de 400 anos atrás nos dizem: “Pelo decreto de Deus, para a manifestação de Sua glória, alguns homens e anjos são predestinados à vida eterna; e outros são predestinados à morte eterna” (Confissão de Westminster, Capítulo 3, IV).

Expiação limitada

A morte de Cristo paga por todos os pecados daqueles que foram eleitos. O perdão dos pecados está disponível a todos os pecadores, mas ele só paga o preço por aqueles a quem o Pai predestinou desde a fundação do mundo. Essa doutrina também é conhecida como expiação “específica” ou “particular”.

Além disso, nos escritos de alguns dos grandes reformadores como João Calvino, John Owen e Charles Hodge, vemos: “Suficiente para todos, eficaz para alguns”. A expiação de Cristo é suficiente para que toda a humanidade seja salva (independentemente de crerem ou não), mas é eficiente somente para aqueles que crêem. O sangue de Cristo poderia salvar a todos, se essa fosse a vontade de Deus; mas essa não é a sua vontade. Isso pode ser visto em vários textos (cf. Jo 6.37-40; Ef 1.4; Is 53.11; 2Co 5.21; Jo 10.11-29).

“Porque este foi o conselho absolutamente livre, a vontade misericordiosa e o propósito de Deus Pai: que a virtude vivificadora e salvífica da preciosa morte de Seu Filho se estendesse a todos aqueles que estão predestinados a, e apenas a eles, dar-lhes a fé justificadora, e, por isso mesmo, conduzi-los infalivelmente à salvação” (Cânones de Dort, Capítulo 2, VIII).

Graça irresistível

Ninguém pode negar ou resistir à graça salvadora de Deus. Esta doutrina também é conhecida como um “apelo efetivo”. Quando a graça vem, nunca pode ser rejeitada: sua eficácia é perfeita. Isto significa que se Deus escolheu alguém, não há nenhuma maneira que essa pessoa não será salva. Quem somos nós para dizer ‘não’ ao Senhor?

“Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e somente aqueles, a Ele lhe agrada, em seu tempo, chamar efetivamente por Sua Palavra e o Espírito…” (Confissão de Fé de Westminster, capítulo 10, I).

Este é possivelmente um dos pontos mais esperançosos de toda a teologia cristã: pela sua poderosa graça, nós que fomos escolhidos seremos glorificados (Rm 8.29-30). Do mesmo modo, vemos o poder da graça em toda a Escritura (cf. Jo 6.37,44,65; Rm 11.7; 2Ts 13-14; 1Co 1.9; Gl 1.5).

Perseverança dos Santos

Os escolhidos — os verdadeiramente salvos — perseverarão até o fim. Outra grande e esperançosa verdade! Filipenses 1:6 nos diz: “Estou convencido precisamente disto: que aquele que começou a boa obra em vós a aperfeiçoará até o dia de Cristo Jesus”. Isto não se refere ao chamado “salvar sempre salvo”, que uma vez que somos escolhidos por Deus, podemos viver como quisermos. Pelo contrário, diz-nos que, na soberania de Deus, aqueles que Ele escolheu para a salvação sustentarão aquela confissão de conversão até à sua morte, perseverando na vida de santidade. Estas verdades estão presentes uma e outra vez na Bíblia (cf. Rm 8.35-39; 2Pe 1.10; Jo 10.28,29; 1Jo 3.9; 1Pe 1.5,9).

“Quem Deus aceitou em seu Amado, e que foi efetivamente chamado e santificado pelo seu Espírito, não pode cair completa ou definitivamente do estado de graça, mas deve seguramente perseverar nele até o fim, e serão salvos eternamente… Esta perseverança dos santos não depende do seu livre arbítrio, mas da imutabilidade do decreto de eleição, que brota do amor livre e imutável de Deus Pai” (Confissão de Fé de Westminster, capítulo 17, I, II).

Mais do que Calvinismo

Os cinco pontos não são tanto “calvinistas” como “cristãos”. A TULIP não pretende ser um substituto ou melhoria da teologia bíblica, mas um reflexo dela. Assim como Newton não inventou a lei da gravidade, mas enunciou a lei, Agostinho, Calvino ou Dort não inventaram essas doutrinas. O Senhor decretou esses gloriosos cinco pontos, e somente Ele merece glória para eles.

Explicar o TULIP não é complicado. Podemos ver claramente cada um desses cinco pontos em toda a Bíblia. Lembremo-nos, este não é o “calvinismo”: este é o glorioso evangelho de Jesus:

  1. Nós somos maus
  2. Não fizemos nada de bom para sermos eleitos.
  3. Cristo morreu pelos pecados dos seus
  4. Ninguém pode resistir a graça.
  5. Aqueles que são realmente escolhidos perseverarão até o fim.


Quando todas as coisas se fizerem novas

Por R. C. Sproul

Como pastor e teólogo, tive que pensar sobre muitas questões difíceis ao longo dos anos. Verdade seja dita, no entanto, o problema mais difícil que enfrentei é o problema do sofrimento. Todos nós enfrentamos o sofrimento de alguma forma, e todos nós conhecemos pessoas que viveram vidas tão dolorosas que nos perguntamos como elas puderam prosseguir.

Não quero, jamais, minimizar ou negar a dor que o sofrimento traz. O cristianismo não é um sistema de negação estoica em que fingimos que tudo está bem, mesmo quando estamos enfrentando as piores coisas. Ao mesmo tempo, não ousamos esquecer a esperança cristã de que um dia o sofrimento irá embora para sempre. Quando lidamos com o sofrimento, tendemos a ter o nosso olhar completamente fixo no presente, mas a resposta cristã ao sofrimento, ao mesmo tempo que nos incumbimos em aliviar o sofrimento presente tanto quanto podemos, olha além do presente para o futuro.

A própria essência do secularismo é a tese de que o hic et nunc, o aqui e agora, é tudo o que existe. Não existe um reino eterno. Mas, como cristãos, somos chamados a considerar o presente à luz do eterno. Isso é o que Jesus pregou repetidamente. O que aproveita ao homem se neste tempo e neste lugar ele ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua alma (Lc 9.25)?

A Escritura diz que o fim define o significado do início (Ec 7.8). Só Deus conhece o fim desde o início de forma abrangente, mas em sua Palavra, ele nos dá um vislumbre do fim para o qual estamos caminhando. E se pudermos focalizar nossa atenção no fim, e não apenas no agora e na dor que sentimos aqui, podemos começar a entender nossa dor na perspectiva certa.

Ao revelar o novo céu e a nova terra, Apocalipse 21-22 nos dá um dos vislumbres mais claros do futuro. Deixe-me mencionar alguns.

“Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima” (21.3-4). Quando eu era pequeno, a vida era difícil. Havia um menino em nossa comunidade que era muito maior do que eu e era um valentão. Uma vez ele me bateu e eu corri para casa chorando. E minha mãe estava na cozinha usando seu avental e disse: “Venha aqui”. Eu entrei, e então ela se inclinou e enxugou minhas lágrimas – uma das formas mais ternas de comunicação – com a barra do avental. Quando minha mãe enxugou minhas lágrimas, fiquei realmente consolado e encorajado a voltar à batalha. Mas eu voltaria e, mais cedo ou mais tarde, me machucaria de novo e choraria de novo, e minha mãe teria que enxugar minhas lágrimas novamente. Mas quando Deus enxugar nossas lágrimas, elas nunca mais fluirão, por toda a eternidade. (A menos, é claro, que sejam lágrimas de alegria.)

Essa é a perspectiva eterna. Isso é o fim do começo. No momento vivemos no vale das lágrimas, mas essa situação não é permanente porque Deus enxugará nossas lágrimas.

João também diz: “a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto” (v. 4). Morte, tristeza, choro, dor – tudo isso pertence às coisas anteriores, que passarão. Posso imaginar tendo conversas com você na nova Jerusalém, e você dirá: “Lembra-se daquela época, quando costumávamos nos preocupar com o problema do sofrimento?” E eu direi: “Mal me lembro o que era.”

Então, no versículo 22, lemos sobre outra coisa que não estará lá. Não apenas não haverá tristeza ou morte, mas tampouco haverá templo na Nova Jerusalém do novo céu e nova terra. Mas como pode a nova Jerusalém ser a cidade sagrada sem um templo? Bem, João quer dizer que não haverá construção de templos. Haverá outro tipo de templo, diz João – “o Senhor Deus Todo-Poderoso e o Cordeiro”. O mais belo santuário terrestre deste mundo ficará fora de moda na nova Jerusalém, porque estaremos na presença de Deus e do Cordeiro.

“Nunca mais haverá qualquer maldição” (22.3). Você conhece aquela música “Joy to the World”? Eu amo a linha da música que termina com “até onde a maldição é encontrada”. Quão longe é isso? Nesta escuridão atual, a maldição se estende até o fim da terra – para nossas vidas, para nosso trabalho, para nossos negócios, para nossos relacionamentos. Todos sofrem sob as dores da maldição de um mundo decaído. É por isso que existe um anseio cósmico, onde toda a criação geme juntamente esperando a manifestação dos filhos de Deus, esperando por aquele momento quando a maldição for removida (Rm 8.19). Não haverá ervas daninhas ou joio na nova Jerusalém. A terra não resistirá aos nossos arados porque a maldição não será encontrada. “Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os seus servos o servirão” (Ap 22.3).

E então temos a maior esperança, a promessa mais maravilhosa do Novo Testamento – veremos a face de Deus (v. 4). Em toda a nossa vida podemos nos aproximar do Senhor, sentir sua presença e falar com ele, mas não podemos ver seu rosto. Mas se perseverarmos na dor e no sofrimento deste mundo presente, a visão de Deus nos espera do outro lado. Você pode imaginar isso? Você pode imaginar olhar para a glória revelada de Deus por um segundo? Isso fará com que cada dor que já experimentei neste mundo valha a pena.

“Estas palavras são fiéis e verdadeiras” (v. 6) – não a pomada ou o ópio para entorpecer nossa dor presente, mas a verdade do Deus Todo-Poderoso, que nos fez, que nos conhece, que pelo sofrimento de seu Filho redimiu seu povo. Ele nos garantiu que, se estivermos em Cristo somente pela fé, estaremos destinados à glória, e nada pode descarrilhar esse trem. Portanto, essas coisas anteriores que nos causam tanto sofrimento passarão e ele fará novas todas as coisas.


21 novembro 2020

Apegados à Palavra

Por Rev. Jaidson Araújo 

Uma marca essencial do nosso tempo é a negação da verdade. A máxima que impera é: “cada um tem a sua verdade”. Ao aderirmos, ou aceitarmos que cada um tem sua própria verdade reconhecemos o que também é pressuposto: que a verdade é inalcançável e indiscernível. O “espírito” do nosso tempo é desapegado de qualquer padrão, seja ético, moral ou cultural. A forma de ser do nosso tempo valoriza tudo o que é minoritário, periférico, amoral, impróprio etc. Esse perfil já fora antecipadamente denunciado pelo apóstolo Paulo em 2Tm 4.4, nessa passagem Timóteo é alertado que nos últimos tempos as pessoas não suportariam a verdade, e a recusariam.

Na contramão dessa forma de ser e pensar está a postura cristã. O mesmo apóstolo instruindo a Tito quanto àqueles que deveriam liderar e ser modelo para os cristãos, os presbíteros; Paulo destaca as qualidades de caráter que deveria ser evidenciada pela vida de um presbítero, e, dentre elas sobressai a de ser apegado à Palavra (Tt 1.9). Esta marca deveria ser visível na vida do presbítero, que deveria ser modelo para o rebanho.

Quando pensamos em alguém apegado à Palavra, segundo a Bíblia, somos remetidos à maior expressão de apego à Palavra da Escritura Sagrada, o Salmo 119. O Salmo 119 é a mais completa e exuberante expressão de apego e admiração à Palavra. O poema sapiencial, organizado meticulosamente em 22 parágrafos de 8 versículos, dispostos conforme a ordem do alfabeto hebraico, concentra-se em demonstrar suas convicções, sentimentos e atitudes acerca da Palavra de Deus, do Mandamento, dos Preceitos, do Conselho, dos Decretos, os Testemunhos, a Lei.

O autor do Salmo 119 não nega suas convicções quanto à Palavra. Ele nutre em seu coração que o que tudo o que a palavra de Deus ensina é a VERDADE que ilumina o seu entendimento, que dá sabedoria, que conduz à vida. Sem vacilar ele expõe que tudo o que a Palavra de Deus diz é JUSTO, e não somente isso, mas fica evidente em seu poema que ele crer que tudo o que diz a Palavra de Deus é BOM!

As crenças quanto à Palavra despertam sentimentos em sua alma. O salmista alimenta em seu coração AMOR pelo mandamento do Senhor. Não suportava ficar distante da Palavra, pois ela é sua fonte de PRAZER, por isso ele ANELA e DEPENDE do Conselho do Senhor.

Mas, suas convicções não despertavam apenas sentimentos quanto à Palavra, mas também atitudes. Alguém que acredita que a Palavra de Deus é verdadeira, justa e boa, a ama, deseja depende e tem prazer nela, oriente sua vida por ela. É o que vemos no autor do salmo, ele é alguém que CELEBRA a Palavra de Deus, que FALA a Palavra e da Palavra, elas estão continuamente em seus lábios; o salmista ESTUDA a Palavra e a GUARDA NO CORAÇÃO com a disposição de OBEDECER tudo quanto ela o instruir. Existem muitas outras ações do autor em relação à Palavra, mas, por fim, destacamos que ele LOUVA PELA PALAVRA, que é o culminar desse apego.

O Salmo 119 é a expressão de apego à Palavra, de apego à verdade. A leitura deste Salmo nos desafia e nos encoraja a vivermos de modo apegado a Palavra nesse tempo de desapego. Esta leitura nos encoraja a amarmos e dependermos da Verdade, a Palavra de Deus. Esse poema de sabedoria nos encoraja a agirmos com coerência: se pela Palavra conhecemos a Salvação de Deus, e Ela nos instrui quanto ao modo de vivermos que agrada ao nosso Salvador, APEGUEMO-NOS À PALAVRA.

Contrariando o nosso tempo, onde cada um tem sua própria verdade e vive orientado pelo padrão do seu próprio entendimento, eu gostaria de te desafiar – você que foi alcançado e transformado pela Palavra, a buscar fora de você, a buscar na Palavra, a verdade para orientar sua vida, seus valores, suas crenças, convicções, relacionamentos, gostos, sonhos, toda sua vida.

Por fim, gostaria de estimulá-lo a ler este salmo, verificar as afirmações aqui feitas, e deleitar-se na Palavra de Deus.

Fonte: boletim da Primeira Igreja Presbiteriana do Recife, 22/11/2020.


14 novembro 2020

A Atualidade da Palavra de Deus

Por Tiago Santos 

A palavra “ética” vem do grego “ethos” e significa “caráter” ou, ainda, modo de ser. Significa, basicamente, o conjunto de valores morais que guiam o indivíduo em relação ao seu próximo. A moral, por sua vez representa os valores e costumes pelos quais uma sociedade se pauta.

A ética é matéria de grande importância nas ciências humanas pois é o que dá viabilidade ao convívio em sociedade, mas, via de regra, disciplinas que se pautam por uma ética mais secularista, isto é, que não reconhecem sua origem em Deus – mas como parte de um desenvolvimento social, terão como resultado um tipo de ética meramente descritiva, imanente, relativa, subjetiva, mutável e, por vezes, utilitarista.

Uma boa maneira de verificar como anda a ética numa dada sociedade é olhando suas leis. Normalmente, os costumes e leis que regem a vida social refletem a moral daquela comunidade e apontam para a volatilidade de sua ética coletiva.

No caso do Brasil, o Código Penal Brasileiro ajuda a ilustrar esta volatilidade: Até 1977, por exemplo, não existia divórcio na legislação brasileira. O sujeito separava e desquitava, mas não podia contrair novo matrimônio – isto é resultado de uma visão mais robusta (e até sacramental) do casamento, com base na teologia católico-romana. Mas podemos pensar em exemplos mais recentes, como a Lei 11.106 de 2005 que revogou os seguintes crimes contra o costume: 

  • a) Art 217) Sedução de mulher virgem, menor de 18 anos e maior de 14 “sedução que aproveita-se de sua inexperiência e justificável confiança”.
  • b) (Art 219) Rapto de mulher honesta mediante fraude.
  • c) (Art 240) Cometer adultério.
A supressão desses artigos é uma evidência da mudança de valores que não mais reconhece, no século 21, apenas 60 anos depois da promulgação do código (que é da década de 1940) o adultério como uma violação do casamento ou as figuras da “jovem inexperiente” e da “mulher honesta”.

Embora a ética seja tema de estudo e valor para várias disciplinas, como a filosofia, a sociologia, o direito, a psicologia, a política, dentre outras, a ética é também o ponto vital e mais determinante da Teologia.

Ética é matéria teológica e todo cristão deve entender isso. A maneira como ele vive é resultado de sua teologia. Sendo chamado por Deus para viver neste mundo mas refletir os valores do Céu, revelados por Deus nas Escrituras, o cristão rapidamente se vê diante de grandes dilemas, pois os valores do presente século estão muito distantes dos valores de Deus. Contudo, tendo o dever de ser “luz do mundo e sal da terra”, o cristão não pode viver isolado em algum tipo de subcultura ou “bolha eclesiástica”. Ele precisará ser capaz de articular os valores da Palavra de Deus no mundo em que está. Por esta razão, expressa opiniões tais como: ser contrário ao aborto, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e a conduta homossexual, ou ainda a afirmação de que o núcleo familiar é monogâmico e heterossexual, dentre outros valores basilares das Escrituras.

Mas é preciso que o cristão moderno seja capaz de oferecer fundamento e solidez para as posições que expressa. C. S. Lewis, em um discurso para jovens anglicanos do país de Gales, em 1945, disse que: “Cada um de nós possui várias opiniões que parecem consistentes com a fé, verdadeiras e importantes. E talvez sejam. Mas nosso papel é defender o cristianismo (não nossa opinião). Temos de fazer a diferença entre a opinião pessoal e a Fé. O apóstolo Paulo fez isso em 1Co 7.25. (…). A maior dificuldade é levar os ouvintes modernos a entender que você prega o cristianismo porque acredita que ele é verdadeiro. Eles sempre supõem que você prega porque gosta da mensagem, acha que ele é boa para a sociedade. Bem, a distinção clara entre o que a Fé afirma e o que você gostaria que ela dissesse, ou o que você entende ou considera útil, força os ouvintes a entender que você está preso a seus dados, exatamente como o cientista é limitado pelo resultado da experiência. Você não diz apenas aquilo que gosta. Isto os ajuda a entender que o que está em discussão é uma questão sobre fato objetivo – não conversa vazia sobre ideias ou opiniões.” (C. S. Lewis, Ética para viver melhor: diferentes atitudes para agir corretamente. São Paulo, SP, Editora Planeta, 2018. Pg. 95).

Mas a Palavra de Deus e a ética cristã que esta ensina é a fonte definitiva da sabedoria de Deus para um mundo em crise. Os problemas enfrentados pelo homem são sanados pela Palavra.

Por isso o cristão deve ser capaz de articular os fundamentos de sua posição da ética bíblica e demonstrar que esta é a única e mais firme verdade pela qual o ser humano deve viver – um fato objetivo – ao tempo em que demonstra a fragilidade do sistema ético secular.

A ética cristã, se apresenta como tendo origem em um Deus pessoal e criador do universo, que se revelou ao homem e comunicou seu caráter a ele, sendo, portanto, revelada, transcendente, absoluta, normativa, objetiva, imutável e deontológica (isto é, uma ética do ser, independente dos resultados).

Enquanto “modus vivendi” estabelecido por Deus na criação, é dever de todo ser humano.

Na criação, Deus estabeleceu critérios pelos quais o homem deveria viver (Gn 1-3). O núcleo de toda vontade de Deus para todas as esferas da vida foi descortinado ao homem tanto no “imago Dei” como no pacto que Deus faz com o home na criação, de modo que Deus orienta o homem em todas as áreas da vida humana: a família, o trabalho, a cultura, a espiritualidade, enfim foram todos idealizados num mundo pré-queda e determinados por Deus como norma para a humanidade. A queda alienou o homem de Deus e seu efeito devastador na alma humana poluiu seu coração, incapacitando-o para cumprir a vontade de Deus. Mas Deus se manifestou em graça e chamou o homem a uma nova relação com ele, pela redenção prometida no Messias.

Assim, embora a ética cristã seja obrigação de todo homem, esta só pode ser verdadeiramente perseguida e aplicada por aqueles que forem convertidos a Deus pelo poder do Espírito no Evangelho, passando a desejar viver para agradar a Deus e fazer a vontade dele. Nesse sentido, sua aplicabilidade imediata será para os cristãos. Isso porque os cristãos são capacitados pelo Espírito de Deus para viver uma vida de obediência e debaixo do Senhorio de Cristo.

A ética cristã, ainda mais, procura discutir e definir questões fundamentais como o verdadeiro significado e propósito da vida humana, quem é o homem, qual é a natureza do homem, como deve ser o homem, o que é verdade, justiça e retidão, o que é moralmente certo e errado, o que é uma vida correta, como devem ser os relacionamentos interpessoais do homem, qual a posição do homem diante do seu Criador e diante do seu Salvador, Jesus Cristo, quais são as implicações do senso de dever, de obrigação moral do homem para com Deus e seu próximo. A tarefa da ética cristã é encontrar um critério objetivo para determinar qual é o bem com o qual o homem, como ser moral, deve se conformar – neste caso, a imagem e estatura daquele que viveu plenamente os valores da ética Cristã expressos na lei moral, Jesus Cristo.

Nos Dez Mandamentos, encontramos a expressão máxima da lei moral de Deus e a revelação objetiva de como Deus quer que os homens vivam. Esta lei moral de Deus está presente em toda manifestação revelatória de Deus: nas leis civis, nas leis sanitárias, nas leis cerimoniais, nos preceitos, nos estatutos e até mesmo nas revelações proféticas extraordinárias, todavia, no Decálogo, temos a expressão suma da vontade de Deus para o homem.

No decálogo, portanto, encontramos o que Hans Heifler chamou de “moldura da ética cristã”. Pode se dizer que é uma “bússola” para o cristão, pois embora não haja instrução específica sobre como agir em cada diferente dilema e situação da vida – pois não se ocupa da casuística –nessas dez palavras é possível encontrar todo o princípio que haverá de nortear a vida do cristão. Martinho Lutero refere-se aos dez mandamentos como o modelo, a fonte e o canal pelo qual o cristão viverá.

Esses 10 Mandamentos, em sua forma tradicional abrangem um código duplo de deveres religiosos (Êx 20.3-12) e sociais (Êx 20.13-17) embora submeta as duas áreas (adoração, a proibição dos ídolos, o juramento, o dia sagrado e a piedade filial, de um lado; e a santidade de vida, casamento, das posses, da verdade e do desejo, do outro lado) à autoridade divina direta. Os mandamentos também são dados de forma negativa, mas, em cada um deles há um núcleo de valores positivos sendo defendidos. Quando estudamos os mandamentos, fazemos bem em compreender ambos os polos – aquele mais evidente, que proíbe-nos de certa conduta (isso é bem didático e fala bem sobre nossa condição humana caída) e aquele positivo, que está implícito na forma afirmativa do mandamento. Esse é o bem que Deus protege, que Deus tutela.

Na ética no novo testamento – tanto no ensino de Jesus nas bem aventuranças como nos casos mais específicos trabalhados pelos apóstolos Paulo, Pedro, João, Tiago em suas epístolas (ao tratar de questões tais como pureza, fraternidade, bondade, etc; questões de trabalho, família, governo, etc) o que vemos são a aplicação ou mesmo a interpretação – ou ainda, ampliação dos princípios morais havidos nos dez mandamentos. O ensino ético do Novo Testamento, portanto, não cria uma dicotomia entre lei e graça. Do contrário, o apóstolo Paulo ensina que a lei era expressão da graça, pois revela a condição perdida do homem e estabelece o modelo pelo qual aquele que foi justificado pela graça viverá. Para Paulo, a lei era santa, justa, espiritual e boa (Rm 7.12, 14, 16). É o próprio Espírito de Deus que habilita o cristão amar, seguir e obedecer a Deus em seus mandamentos.

Esta foi a razão porque, na Reforma do século XVI encabeçada por Martinho Lutero, o Decálogo foi tão realçado e usado, inclusive, como fundamento dos catecismos que ensinavam os caminhos básicos da vida cristão piedosa, com o Catecismo Maior de Lutero. Os reformadores, acompanhando Lutero, foram muito perspicazes em perceber isso. O reformador francês João Calvino inseriu uma seção inteira de comentário ao Decálogo em suas Institutas e disse que o decálogo é a “única regra de vida perpétua e inflexível”. Ele reconhecia o valor do decálogo porque via nele o direito de Deus legislar, os valores de Deus revelados na legislação dada, seu padrão elevado e perfeito de justiça e nossa incapacidade de satisfazer as exigências de sua justiça, tendo necessidade de um justificador mais justo do que nós. Uma vez tendo recebido esta justiça, o Espírito de Deus então inscreve essa lei em no coração da pessoa redimida e esta passa a desejar obedecer a Lei para honrar, adorar e louvar o Deus criador e legislador que, por graça, salvou homens e mulheres para que possam viver uma vida justa e santa, “coram Deo” – diante de Deus.

Enfim, a Lei de Deus define, guia e ilumina a vida humana e fornece ao cristão segurança para afirmar os valores de Deus como sendo a bússola moral para dar sentido e direção ao ser humano em todas as áreas da vida.

Só a lei imutável, objetiva, santa e bela de Deus é que pode dar sentido e direção a este mundo caído. O fundamento das posições cristãs é a verdade objetiva das Escrituras e o exemplo de vida conduzida pela fé, arrependimento e humildade. É assim que o cristão será sal e luz neste mundo.



02 novembro 2020

A Doutrina Reformada acerca da Revelação

Por Paulo R. B. Anglada 

Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência manifestam de tal modo a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, todavia não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade, necessário à salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto torna a Escritura Sagrada indispensável, tendo cessado aqueles antigos modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo (Confissão de Fé de Westminster, 1:1)


O primeiro capítulo da Confissão de Fé de Westminster começa tratando da bibliologia, a doutrina das Escrituras. Isto é apropriado. Não porque a doutrina das Escrituras seja mais importante do que outras doutrinas, como a pessoa e obra de Deus (a teologia propriamente dita) e de Cristo (a cristologia). Mas porque a doutrina das Escrituras é a base, a fonte de todas as demais doutrinas.

Com o princípio reformado resumido na expressão latina sola Scriptura, os reformadores rejeitaram a autoridade das tradições eclesiásticas e das supostas novas revelações do Espírito. E restabele­ceram as Escrituras como única regra de fé e prática, como única fonte autoritativa em matéria de doutrina e prática eclesiástica.

DIVISÃO DO ASSUNTO 

As seguintes doutrinas são tratadas neste capítulo da Confissão de Fé:

  • Doutrina da Revelação (parágrafo I)
  • O Cânon e a Inspiração das Escrituras (parágrafos II e III)
  • Autoridade das Escrituras (parágrafos IV e V)
  • Suficiência das Escrituras (parágrafo VI)
  • Clareza das Escrituras (parágrafo VII)
  • Preservação e Tradução das Escrituras (parágrafo VIII)
  • Interpretação das Escrituras (parágrafo IX)
  • O Juiz Supremo das Controvérsias Religiosas (parágrafo X)

REVELAÇÃO NATURAL 

A Confissão de Fé de Westminster começa professando a doutrina da revelação natural: Deus se revela por meio das obras que foram criadas e da própria consciência do homem, na qual está impregnado um padrão moral, ainda que imperfeito por causa da queda.

Biblicamente falando, o universo físico é uma pregação. O cosmos proclama os atributos de Deus. O macrocosmos (as estrelas, os planetas, os satélites, com sua imensidão, grandeza e leis), o cosmos (a terra, os mares, as montanhas, os vegetais, os animais, o homem), e o microcosmos (os microorganismos, a constituição dos elementos, etc.) revelam muita coisa a respeito da pessoa e da obra de Deus. O Autor de tal obra tem de ser infinitamente sábio e poderoso.

O próprio ser humano, como criatura de Deus, independente­mente do aprendizado, já nasce com uma consciência, uma versão da lei de Deus impregnada no seu ser que o habilita a discernir entre o bem e o mal e com um instinto que o induz à adoração da divindade. Este é o ensino bíblico do Antigo e do Novo Testamento:

Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo (Sl 19:1-4).
Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas (Rm 1:19-20).
Quando, pois, os gentios que não têm lei procedem por natureza de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada nos seus corações, testemunhando-lhes também a consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se (Rm 2:14-15).


Ao estudar a criação, o homem deveria procurar ver Deus nela, pois é obra dele, e revelam os seus atributos. As ciências podem até ser consideradas departamentos da teologia, especializações que estudam a criação e a providência. O estudo da química, da física, da matemática, da biologia, da geografia, da política, da antropologia, da história, etc., deve ter por fim último a glória de Deus. Não é sem razão que muitos dos primeiros cientistas dignos do nome eram cristãos sinceros, como Isaac Newton e Faraday.

Ao se estudar a criação, em qualquer esfera, deveria se descobrir nela as mãos de Deus e as mãos do diabo. Por um lado, observa-se nela impressionante e substancial lógica, ordem, harmonia, sabedoria e poder. Por outro lado, pode-se também perceber na natureza os traços da corrupção, desordem, conflito e degeneração decorrentes da queda. Mas a educação do nosso século, especialmente no nosso país, embora, em geral, reivindique ser cristã, tornou-se na verdade materialista. Onde, nas escolas e universidades, essas disciplinas são estudadas com essa perspectiva e com esse propósito?!

A CULPA HUMANA 

Se o homem não houvesse caído, a revelação natural seria suficiente para que ele compreendesse as verdades com relação a Deus, à criação, ao próprio homem, etc.; de modo a submeter-se a Deus e a adorá-lo, rendendo-lhe a graça, o louvor e a honra que lhe são devidas.

Mesmo caído, a revelação natural ainda é suficiente para torná-lo indesculpável, pois o homem natural deturpa a revelação natural. Ele não dá ouvidos à pregação da natureza que o convida a glorificar a Deus. Ele não se submete à proclamação do cosmo, nem reconhece a origem divina das leis que regem o universo. O homem natural também não se submete às leis da sua própria consciência, transgredindo-as constante e deliberadamente. Recusando-se rebeldemente a reconhecer a soberania do Criador e a adorá-lo, o homem natural prefere adorar a criatura.

Tais homens são por isso indesculpáveis; porquanto tendo conhecimento de Deus não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos, e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis... pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém (Rm 1:21-23, 25).


Este diagnóstico é igualmente verdadeiro, quer aplicado à filosofia dos sofistas, epicureus e gnósticos da Grécia Antiga, quer aplicado ao humanismo renascentista, quer aplicado à ciência materia­lista moderna. Onde, insisto, nas escolas e universidades de nosso país, estuda-se a criação pela perspectiva das Escrituras e com o propósito de glorificar a Deus?

O homem natural confunde o Criador com a criação (e crê no panteísmo), isola o Criador da criação (e prega o deísmo), rejeita o Criador (e professa o materialismo), ou dá-se por satisfeito com a criação (dando origem ao naturalismo). Na sua louca cegueira, o homem natural rebelde vai além: ele prefere atribuir os traços de corrupção, desordem e conflito percebidos na criação ao Criador, e explicar a substancial lógica, ordem, harmonia, sabedoria e poder nela percebidos às forças cegas da natureza, à evolução natural, à seleção natural, ou mesmo a mutações genéticas.

Por isso o homem é indesculpável. Por isso é justamente culpado: por se recusar a andar conforme o grau da revelação que recebe, seja da natureza, seja da consciência, e se entregar rebelde e arrogan­temente a todo tipo de impiedade. “Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem” (Rm 1:32).

INSUFICIÊNCIA DA REVELAÇÃO NATURAL 

A revelação natural é, portanto, suficiente para condenar, mas não para salvar. Devido ao estado decaído do homem, a revelação natural não é nem clara nem suficiente para que as verdades necessá­rias à sua salvação sejam compreendidas.

A religião natural ensina que a revelação da natureza é suficiente para a salvação do homem. Para os que assim pensam, a mente humana desassistida pode compreender tudo o que é necessário à salvação. Mas tal ensino contradiz frontalmente a revelação bíblica. De acordo com as Escrituras, “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente” (1 Co 2:14). Segundo as Escrituras, “aprouve a Deus salvar aos que crêem, pela loucura da pregação” (1 Co 1:21). É por isso que o apóstolo Paulo exclama: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em que não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?” (Rm 10:13-14). Qual a conclusão? “Logo, a fé vem pela pregação (pelo ouvir) e a pregação (o ouvir), pela palavra de Cristo” (Rm 10:17).

Deus se revela na criação, sim. Esta revelação é suficiente para tornar a raça humana indesculpável. Mas, por causa da queda, não é suficiente para a salvação de ninguém.

REVELAÇÃO ESPECIAL 

Não sendo a revelação natural suficiente para salvar o homem em função da queda, aprouve a Deus revelar-se diretamente à igreja.

Assim, Deus preparou um povo, Israel, na Antiga Aliança, e a Igreja, na Nova Aliança, para revelar-lhe diretamente o conhecimento necessário à salvação. De modo direto e sobrenatural, por meio do seu Espírito, através de revelação direta, teofanias, anjos, sonhos, visões, pela inspiração de pessoas escolhidas e pelo seu próprio Filho, Deus comunicou progressivamente à igreja, no curso dos séculos, as verda­des necessárias à salvação, as quais, de outro modo, seriam inaces­sí­veis ao homem.

Foi assim que Deus revelou-se a Noé, a Abraão, a Moisés, aos profetas, a Davi, a Salomão, aos seus apóstolos e, especialmente, em Cristo. É neste sentido que o autor da Epístola aos Hebreus afirma que, “Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hb 1:1-2). Cristo é a revelação final de Deus.

É este também o sentido das palavras do apóstolo Paulo endereçada aos gálatas: “Faço-vos, porém, saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem; porque eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo” (Gl 1:11-12).

À igreja de Deus, portanto, foram confiados os oráculos de Deus, uma revelação especial, inspirada, clara, precisa, autoritativa, suficiente para ensinar ao homem o que ele deve conhecer e crer e o que dele é requerido, com vistas à sua própria salvação e à glória de Deus.

REVELAÇÃO ESCRITA 

Tendo em vista a insuficiência da revelação natural e a absoluta necessidade da revelação especial, aprouve a Deus ordenar que esta revelação fosse toda escrita, a fim de que pudesse ser preservada e permanecesse disponível, para a consecução dos seus propósitos eternos. Deus conhece perfeitamente a natureza humana corrompida. Ele conhece também a malícia de Satanás, bem como a perversão do mundo. Ele sabe que revelar a sua vontade à igreja não seria suficiente, pois seria fatalmente corrompida e deturpada. Basta observar as tradições religiosas, mesmo as ditas cristãs; como tendem inexoravel­mente para o erro!

Por isso Deus fez com que todas as verdades necessárias à salvação, santificação, culto, serviço e vida do homem, fossem escritas e preservadas, para que pudessem ser conhecidas, cridas e obedecidas. Com este propósito, o próprio Deus, por meio do seu Espírito, inspirou os autores bíblicos, a fim de que pudessem escrever a revelação especial, sem erro algum.

Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra (2 Tm 3:16).
Temos assim tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vossos corações; sabendo, primeira­mente, isto, que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana, entretanto homens santos falaram da parte de Deus movidos pelo Espírito Santo (2 Pe 1:19-21).

De acordo com este parágrafo da Confissão, portanto, a revelação escrita é expressão da graça de Deus com vistas à preser­vação da integridade da verdadeira religião e à salvação, edificação e conforto do seu povo.

NECESSIDADE DAS ESCRITURAS 

Sendo a Palavra escrita o meio escolhido por Deus para revelar a sua vontade ao homem, ela não pode ser dispensada, igualada, acrescentada nem suplantada. Nem o Espírito agiria em detrimento ou à parte dela, mas com e por ela. É neste sentido que as Escrituras são necessárias e indispensáveis para a comunicação das verdades necessárias à salvação. A Igreja Católica têm a tradição oral. Os reformadores radicais tinham a palavra interior. Outras denominações modernas têm novas revelações do “Espírito.” A fé reformada se fundamenta inteiramente nas Escrituras.

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Fonte: Extraído de Paulo R. B. Anglada, Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras (São Paulo: Editora Os Puritanos, 1998), 25-31.

31 outubro 2020

A Reforma e o "Sola Scriptura"

Por Augustus Nicodemus Lopes 

Hoje é o aniversário da Reforma Protestante. Seria bom lembrar um dos seus pilares, o conceito de Sola Scriptura, “Somente a Escritura”.

Se quisermos achar um evento que sirva como marco histórico para a origem do conceito, a resposta de Lutero na Dieta de Worms (1521) imediatamente vem à mente. Ao ser perguntado, pela segunda vez, se iria se retratar de suas posições expressas nas 95 teses, ele respondeu: 

“A menos que eu seja convencido pelas Escrituras e pela razão pura e já que não aceito a autoridade do papa e dos concílios, pois eles se contradizem mutuamente, minha consciência é cativa da Palavra de Deus. Eu não posso e não vou me retratar de nada, pois não é seguro nem certo ir contra a consciência. Deus me ajude. Amém.”

Em outras palavras, Lutero declarou que só aceitaria o que pudesse ser provado pelas Escrituras: “Sola Scriptura”

Aceitando somente a Escritura, Lutero deduziu que a salvação era somente pela graça (sola gratia), somente pela fé (sola fide) na pessoa e obra de Cristo (solus Christus), redundando em glória somente a Deus (soli Deo gloria), divergindo, assim, do que era ensinado na sua época e que era baseado na tradição, bulas e declarações de concílios. Como a venda de indulgências, por exemplo. Em outras palavras, o conceito de sola Scriptura é fundamental para o edifício da teologia da Reforma.

Mas, esclareçamos. Como cristão reformado, quando eu uso a expressão Sola Scriptura não estou negando que a Palavra de Deus, a princípio, foi transmitida oralmente, antes de ser escriturada. Também não estou negando que Deus se revelou à humanidade na natureza, por meio das coisas criadas (revelação geral, embora não salvífica) e nem estou reduzindo a atividade do Espírito Santo nos crentes ao momento de leitura da Bíblia. Nem nego a necessidade de pastores, mestres e evangelistas. Eu também não estou dizendo que a Bíblia é sempre clara em todas as suas partes e menos ainda que ela é exaustiva.

Quando os cristãos reformados declaram “Sola Scriptura!” eles estão dizendo fundamentalmente que a palavra que Deus falou através dos séculos através de pessoas que ele escolheu e inspirou, na qual Ele se revelou e revelou sua vontade para seu povo, se encontra agora somente nas Escrituras Sagradas, e em nenhum outro lugar. 

Esta revelação escrita é suficientemente clara em matérias pertinentes à salvação e santificação do povo de Deus e suficiente para que se conheça a Deus e a sua vontade.

Em outras palavras, Sola Scriptura significa que a única regra de fé e prática para os cristãos são as Escrituras Sagradas do Antigo e do Novo Testamento, pela simples razão de que elas, e somente elas, são inspiradas por Deus. A tradição oral, os pronunciamentos dos concílios e líderes religiosos e as opiniões de teólogos não são. Eles podem ser úteis em nossa compreensão das Escrituras e das origens do Cristianismo, bem como nas aplicações de seus princípios às questões de nossos dias, quando não contradizem as Escrituras. Contudo, nenhum deles é a base e o fundamento para minha fé e as minhas práticas. 

Assim, eu não tenho nenhum problema em aceitar uma tradição oral desde que se possa demonstrar que ela tem origem no ensino dos apóstolos. Da mesma forma, aceito os ensinos dos Pais da Igreja que comprovadamente estão de acordo com os escritos do Novo Testamento.

Da mesma maneira, “revelações” e “profecias” que pretendem adicionar alguma coisa à Escritura, ou que a contradizem, são, como disse Jeremias, meros sonhos e ilusões de profetas que não têm o Espírito de Deus (Jer 23:9-40), pois “o testemunho de Jesus é o espírito da profecia” (Ap 19.10).

É claro que não vamos encontrar o slogan Sola Scriptura na Bíblia, pelo menos não como uma frase ou declaração. Mas existem evidências claras o suficiente para aceitarmos que, ao dizer que sua consciência estava cativa somente à palavra de Deus, Lutero estava expressando um princípio amplamente exposto nas Escrituras. 

Para quem quiser depois consulta-los, acredito que os textos abaixo deixam claro que já há nas próprias Escrituras uma compreensão de que elas são inspiradas por Deus e que nelas Deus fala de maneira autoritativa e suficiente para seu povo: 

Jo 5.24; Jo 20.30-31; 2Pe 1.20-21; 2Tm 3.14-17; 1Co 14.37-38; 1Ts 4.8; 2Ts 3.14; 2Pe 3.15-16; Sl 19.7-9; Is 8.19-20; Jo 10.35; Rm 15.4; Hb 4.12; Ap. 22.18-19.

Há outras, mas estas bastam para mostrar que: (1) há uma clara consciência do conceito de Escritura como sendo o meio pelo qual Deus fala; (2) as Escrituras são consideradas, portanto, como a autoridade final nas coisas concernentes a Deus e nossa relação com ele e com os outros; (3) que nenhuma outra fonte de autoridade pode ser colocada ao lado das Escrituras.

É em passagens assim que os cristãos reformados se baseiam para dizer que é somente nas Escrituras que Deus nos fala de maneira autoritativa e final. E portanto, nossa consciência está cativa somente a elas. 

Enfim, Sola Scriptura.

Fonte: Facebook

28 outubro 2020

Falsos Mestres, um “Câncer” Dentro da Igreja

Por Vilmar Rodrigues Nascimento 

Zelo espiritual é uma qualidade indispensável ao verdadeiro pregador da Palavra de Deus. No entanto, esse mesmo zelo tem sido usado por falsos mestres moralistas e farisaicos com fins espúrios. É por isso que os falsos líderes são tão amados e admirados. Eles exercem suas funções eclesiásticas levantando a bandeira do zelo pelas coisas sagradas, quando na verdade, são lobos vorazes em pele de cordeiros. 

A história bíblica, eclesiástica e teológica é prova contundente que muitos hereges foram grandemente estimados por suas pregações e ensinos moralistas. Louis Berkhof escreveu sobre o herege Márcion nestes termos:

“Homem de zelo profundo e de grande habilidade, que labutava no espírito de um reformador. A princípio procurou sujeitar a Igreja à sua maneira de pensar, mas não conseguindo êxito em sua obra reformista, sentiu–se constrangido a organizar seus seguidores numa Igreja separada, buscando aceitação universal para seus pontos de vista através de ativa propaganda” (A História das Doutrinas Cristãs. Editora: PES. Pg. 49).


Márcion ensinava uma distinção absoluta entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento. Para ele, o Deus do AT não era o mesmo do NT. Entendia a matéria como má, portanto, negava a encarnação de Cristo. O apóstolo João em sua primeira Carta à Igreja escreveu alertando tal fenômeno:

“Filhinhos, é já a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo, também agora muitos se têm feitos anticristos, por onde conhecemos que é já a última hora. Saíram de nós, mas não eram de nós; porque, se fossem de nós, ficariam conosco; mas isto é para que se manifestasse que não são todos de nós” (1 Jo 2.18, 19).


Muitos blasfemadores saíram da Igreja ao serem confrontados e combatidos pelos apologetas. Outros, porém, ficaram disseminando seus erros doutrinários travestidos de zelo espiritual. Os falsos líderes eram e continuam sendo amados porque seus ensinos culminam em práticas pecaminosas que se adéquam ao gosto e interesses de seus ávidos ouvintes. Nesse contexto, como “serpentes”, os falsos mestres continuam tentando muitos membros da Igreja, que atraídos pelos seus discursos arrebatadores são seduzidos e atacados com “veneno” mortal: a heresia.

Todos os falsos mestres receberão no porvir o justo juízo de Deus e Sua implacável ira, castigando-os eternamente em todos os seus pecados.

Nos dias atuais os falsos líderes continuam sendo amados e admirados, mas com uma grande diferença: a mídia. Os holofotes em torno deles têm potencializado não só o amor e admiração, mas terrivelmente a veneração e idolatria de seus seguidores. Qual o principal fundamento para tanto "sucesso"? O amor e o prazer ao pecado travestido de falsa piedade, zelo e moralismo. Acontece assim: Os falsos líderes injetam “veneno” através dos falsos ensinos em seus seguidores e seus seguidores tornam-se um com eles e, ao mesmo tempo, dependentes deles, ao ponto de precisarem de mais “veneno” e mais “veneno”... O resultado é mais amor ao pecado e mais prazer em pecar. Esse ciclo é mortal. O “veneno” injetado mata. Os sintomas do “câncer” são bem vistos no estilo de vida dos falsos mestres e seus seguidores, eles são: egocêntricos e excêntricos. Idólatras e oportunistas. Avarentos e mundanos. Hedonistas e narcisistas. Tornam-se consumidores insaciáveis. É por isso que Paulo ao exortar os jovens pastores Timóteo e Tito, disse enfaticamente:

“É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo casas inteiras, ensinando o que não devem, por torpe ganância” (Tt 1.11). “Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocações, difamações, suspeitas malignas, altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro” (1 Tm 6.3–5).

Em 1 Tm 1.3–7 o apóstolo Paulo exorta e orienta Timóteo bem como a igreja em Éfeso sobre o dano que os falsos mestres podem fazer ao povo de Deus e a causa de Cristo. No verso 7 está escrito: “Pretendendo passar por mestres da lei, não compreendendo, todavia, nem o que dizem, nem os assuntos sobre os quais fazem ousadas asseverações”. O verbo “pretender” no original grego significa: Querer, ter em mente, desejar muito, estar resolvido. O modo verbal particípio presente deixa claro a ação de continuidade. A voz no original é ativa. Portando, os falsos mestres amam continuamente o que fazem e não abrirão mão por ativamente amarem serem o que são – falsos mestres. O restante do versículo e capítulo é uma conclusão lógica à luz do contexto de toda carta do que são capazes e estão dispostos a fazer.

É importante frisar que Paulo ensina Timóteo e a igreja, que os falsos mestres agem abertamente como se fossem verdadeiros “mestres da lei”. Contudo, eles não sabem “nem o que dizem”, que dirá “os assuntos sobre os quais fazem ousadas asseverações”. O verbo “passar” no original significa: Ser, existir, acontecer. Ele está expressando uma ação contínua e ativa. Conclui-se que os falsos mestres jamais abrirão mão de ensinarem por amarem o que fazem. Eles continuarão ativamente dentro da igreja disseminando implacavelmente seus falsos ensinos e para melhor resultado, passam-se por “mestres da lei”. Ou seja, tais hereges existem e acontecem falsamente no meio protestante como “mestres da lei”. Que “câncer!” Que lástima! Que tragédia!

Paulo deixa claro à igreja que os falsos mestres “fazem ousadas asseverações”. Eis aqui uma forma clássica de ação: Eles são firmes em seus discursos e enfáticos no método de impressão de seus ensinos através de uma impressionante impostação vocálica. Eles almejavam o púlpito sagrado. Amam pregar. O verbo “asseverar” no original significa: Afirmar com ênfase, declarar de forma contundente. Seu sentido no texto é colocado por Paulo como uma certeza contínua. Portanto, os falsos mestres sempre usarão a oratória como método e recurso para atingir seus objetivos. E mais: Paulo usa a voz média no original, significando que eles sempre estarão preocupados com seus próprios interesses: O amor, prazer e entrega ao pecado.

Muitos falsos mestres existiam dentro da igreja em Éfeso. Mas Paulo faz questão imediata de citar dois nominalmente: “Himeneu e Alexandre” (1 Tm 1.20). O apóstolo antes de fazer menção dos nomes, usa o verbo no original “rejeitar” no verso 19: “tendo eles rejeitado a boa consciência, vieram a naufragar na fé”. Esse verbo significa: Expulsar para fora de si mesmo, repulsar. É um particípio no aoristo. O aoristo expressa uma ação realiza e acabada. O sentido fica assim: “Alexandre e Himeneu tendo uma vez rejeitado definitivamente a boa consciência, vieram a naufragar na fé”. A voz média é usada para expressar que o sujeito age em benefício próprio. Significando que os dois tomaram tal decisão visando seus próprios interesses. A convicção de Paulo foi clara e objetiva: “os entreguei a Satanás”. Qual propósito? “para serem castigados, a fim de não mais blasfemarem” (v.20).

A igreja em Éfeso não poderia mais se deixar doutrinar e influenciar pelos falsos mestres. Paulo consciente desta realidade exorta Timóteo bem como a igreja:

“Este é o dever que te encarrego, ó filho Timóteo, segundo as profecias de que antecipadamente foste objeto: combate, firmado nelas, o bom combate, mantendo fé e boa consciência, porquanto alguns tendo rejeitado a boa consciência, vieram a naufragar na fé” (vv.18, 20).


É importante ressaltar que Paulo imediatamente no verso 20 cita Himeneu e Alexandre. Por quê? O próprio contexto da carta deixa claro que esses falsos líderes e sua corja não estavam preocupados com o parecer paulino sobre eles. Eles estavam interessados em disseminar suas heresias a fim de darem vazão aos seus desejos carnais e egoístas. Paulo destaca bem tal motivação aos fiéis no capítulo 6.3–10. No verso 5 está escrito: “... homens cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro”. Aqui há uma grande lição para a igreja em todos os tempos no que concerne à prevenção e combate aos falsos líderes. Paulo faz uma afirmação categórica: os falsos mestres são contínuos em seus objetivos. Portanto, não cabe aos líderes e à igreja serem flexíveis com eles. Eles devem ser implacavelmente combatidos. Por isso que o apóstolo Paulo em nome da saúde da igreja e da glória de Cristo não hesitou em citar nomes. Aqui não houve espaço para o hasteamento da tão famosa bandeira hodierna do politicamente correto! Paulo usou o verbo “supor” que no original significa: manter pelo costume ou uso, considerar. O modo verbal é o genitivo, indicando posse. O tempo verbal expressando continuidade e a voz indicando ação do sujeito. 

Para os primeiros leitores ficou clara a mensagem. Ou seja, os falsos mestres estavam viciados no uso contínuo e ativo da fé religiosa como fonte de lucro. Estavam exercendo grande influência sobre as casas e em especial as mulheres (5.1–16). Agindo assim, perpetuavam sua influência e poder dentro da igreja. Eles almejavam tomar posse completa do púlpito – que é a expressão máxima da verdadeira pregação Cristocêntrica – e o transformar em sua mais elevada tribuna pervertendo–o para os seus mais espúrios e avarentos propósitos. O “câncer” mortal do falso ensino estava se espalhando dentro da igreja em Éfeso (2 Tm 2.17,18). É neste contexto que devemos analisar e entender o famoso versículo: “porque o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males; e alguns, nesta cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores” (v.10).

Os falsos mestres de hoje são bem parecidos com os de ontem. Seus erros e práticas são mais visíveis por força da velocidade da informação e propaganda. Os pecados são os mesmos. Os objetivos são os mesmos. Eles amam e se deleitam no prazer do pecado. Precisam custear seus mais exóticos, estapafúrdios e caros desejos carnais. Como? Eles se infiltram na igreja a fim de usá-la para fins gananciosos. Eles nunca saíram por completo de nosso meio. Deus os mantém dentro de seu soberano, sapiente e eterno plano. Naquele grande dia tudo será revelado. Inclusive alguns mistérios que giram em torno dos falsos mestres em sua constante permanência no seio da igreja eleita: “O Senhor conhece os que lhe pertencem” (2 Tm 2.19). Confiemos. Descansemos. Porém, não nos acovardemos. Paulo nesta particularidade é implacável para com seu pupilo na fé, Timóteo:

“Tem cuidado de ti mesmo e da sã doutrina. Continua nestes deveres; porque, fazendo assim, salvarás tanto a ti mesmo como aos teus ouvintes”. “Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a mansidão” (1 Tm 4.16; 6.11).


Timóteo, além do cuidado pessoal, tinha que velar pela sã doutrina, bem como fugir da avareza ao mesmo tempo em que deveria levar a igreja à constante vigilância tendo como alvo a vida eterna, a pátria celestial. A igreja atual tem sofrido constantemente com os falsos mestres moralistas travestidos de uma falsa piedade e zelo espiritual. Não é por falta de advertência bíblica. Paulo alertou contundentemente a igreja em Filipos. No capítulo 3.2, os falsos mestres são chamados de “cães”. Eles estão dentro da igreja que pertence ao Senhor Jesus Cristo. Eles são indomesticáveis. Organizam-se em matilhas. São impuros, egocêntricos, avarentos, idólatras, carnais, moralistas e hipócritas (Fl 3.1–21). Eles precisam ser urgentemente amordaçados (Tt 1.11).

Então por que a igreja atual tem demasiadamente tolerado tais mestres em seu meio e púlpito? Por que a liderança tem sido em geral indiferente há tão grande lástima? Certamente, o mundanismo que tem permeado todas as áreas da igreja é um agente potencializador e, em muito tem cooperado para tal quadro decadente. Contudo, não minimizemos os desejos mais espúrios e carnais dos falsos mestres e dos seus admiradores que têm se alimentado de seus erros e práticas antibíblicas. Tragicamente, os “Himeneu(s) e Alexandre(s)”, têm sido mais ouvidos do que os “Timóteo(s)” e “Tito(s)”. Quem são midiáticos? Quem são propagandistas? Quem alimenta o ego e a carne? Quem ama o ovacionismo? Quem alimenta o sistema religioso institucionalizado mercantilista? Quem ama desesperadamente o dinheiro? A resposta é muito simples – Os falsos mestres e seus seguidores, a igreja “mundanizada” e escravizada pela mídia mercantilista.

Que faremos então? Oremos, preguemos e paguemos o preço em prol do verdadeiro evangelho, o antigo, mas sempre atual evangelho da graça de Cristo, que nunca foi contrário à propagação do reino nos quadrantes do mundo. Ocupemos então, os meios de comunicação de forma bíblica e piedosa a fim de proclamarmos a salvação em Cristo, mas também, o juízo de Deus contra todos àqueles que não passam de verdadeiros aproveitadores.

Soli Deo Gloria. Amém!

Fonte: Bereianos

27 outubro 2020

Ed René Kivitz e as Hermenêuticas das Minorias

Por Paulo Valle 

Está disponível o vídeo em que Ed René Kivitz, pastor Batista em São Paulo, faz uma série de afirmações que contrariam o grande lastro histórico da fé cristã [Link aqui]. Nele, encontramos declarações do tipo “[…] o mundo mudou […] não é possível tratar a Bíblia como verdades absolutas, porque nós não somos os seguidores de um livro […]”. Em outro momento, propõe ser a igreja uma “carta para o novo mundo” e que não devemos nos fixar em “três textos que não foram atualizados”.

O problema de Kivitz está em sua hermenêutica e esse é o ponto a ser destacado. Levando-se em conta tantas outras declarações polêmicas ao longo dos últimos anos, percebe-se seu liberalismo teológico que, em seu fundamento, não crê que a Bíblia seja a palavra de Deus revelada aos homens, mas o resultado das percepções teológicas de um tempo que ficou para trás e, por isso, deve ser atualizada.

Kivitz opta pela tendência dos últimos trinta ou quarenta anos oferecida pelas hermenêuticas das minorias (precisamos falar no plural) marginalizadas, tais como: carcerária, feminista, homossexual, negra, pobre. É claro que o problema não se encontra no dever de defender a dignidade humana, ainda que alguns julguem que àqueles que se opõem aos pressupostos das minorias, no caso dos cristãos conservadores, por exemplo, devam ser reputados como preconceituosos, com todos os adjetivos que as causas das minorias estabelecem.

Então, qual seria o problema? As hermenêuticas das minorias pressupõem que a causa do problema é, exclusivamente, de caráter social, e não individual. Sendo assim, a sociedade deveria, se necessário com a ajuda do Estado, mudar em relação às minorias. Nesse caso, em uma perspectiva cristã histórica, não deveria ser o homossexual a mudar, arrependendo-se de sua condição diante de Deus, mas a sociedade. Quanto ao negro, que obviamente não é uma condição de pecado, deve-se pagar uma dívida histórica pelo tempo de sofrimento e escravidão.

Nessa linha de raciocínio, a igreja deveria se dedicar ao papel de combater o pecado social. O problema não seria o indivíduo e suas escolhas, mas a resistência social em aceitar os pressupostos das minorias. Na essência do discurso, Cristo não seria o redentor de pecadores arrependidos e muito menos o Evangelho encarnado, mas um exemplo de postura social a ser seguida em relação às minorias pelos componentes da sociedade.

Sob as hermenêuticas das minorias, Kivitz propõe um releitura das Escrituras à luz de uma atualização de seu ensino às realidades atuais. É compreensível, mas não aceitável, o seu caminho, pois, não podendo desconstruir as bases da leitura literal da Bíblia, fundamento da Teologia Bíblica, apela à persuasão ad scripturam, isto é, se não é possível derrubar os argumentos das Escrituras, ataque-as, mesmo que sutilmente. E isso é o que ele faz.

Conhecer as Escrituras e os pressupostos das minorias logo nos levará à condição de uma necessária escolha entre uma e outra. Se optarmos pelo evangelho, não precisaremos do discursos ideológicos das minorias, mas se optarmos pelas ideologias das minorias, teremos abandonado o evangelho. O evangelho une, pois todos os homens estão na mesma condição diante de Deus e, em Cristo, retornam à essência do que é ser humano. Já as hermenêuticas das minorias separam.

Aqui está a ironia: as hermenêuticas das minorias, que visam acabar com as segregações, segregam. Tratam-se de hermenêuticas preconceituosas, que fragmentam a sociedade em grupos ideológicos, mesmo dentro da igreja, dividindo a sociedade. O evangelho lida com isso de uma maneira diferente e apropriada, pois em sua cosmovisão, “nele não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher” (Gl 3.28). Não precisamos de uma releitura para atualizar as Escrituras. Precisamos crer. Precisamos conhecer os fundamentos da fé.

NOTA FINAL

Não tenho me esquivado de emitir minha opinião sobre algumas poucas coisas que vêm me preocupando nos arraiais da fé cristã. Como um cristão, tenho buscado estar submetido às Escrituras e oferecer um parecer sobre um tema. Por isso, se você, leitor, não está disposto ao diálogo, mas, ao contrário, à ofensa, resista à tentação, se lhe for possível, de me ofender. Apresentei argumentos. Use argumentos. Nos comportemos como seres que pensam. No caso de erro, aponte-o para que eu o considere.



25 outubro 2020

Devem os Pastores de Hoje se Importarem com a Reforma?

Por D.A. Carson

Pastores dedicados ao ministério têm tantas coisas a fazer. Além da preparação semanal cuidadosa de novos sermões e estudos bíblicos, das horas reservadas ao aconselhamento, do cuidado no desenvolvimento de relacionamentos excelentes, do evangelismo cuidadoso e atencioso (e prolongado!), da mentoria da próxima geração, das incessantes exigências de administração e supervisão, para não mencionar a nutrição de sua própria alma, há uma série regular de prioridades familiares, que incluem o cuidado de pais idosos e de netos preciosos e um cônjuge doente (ou qualquer número de permutações de tais responsabilidades), e, para alguns, com níveis de energia diminuídos em proporção inversa aos anos que vão avançando.

Portanto, por que deveria eu reservar horas valiosas para ler sobre a Reforma, que teve início há cerca de 500 anos? É verdade que os Reformadores viveram em tempos de mudanças rápidas, mas quantos deles pensaram seriamente sobre a epistemologia pós-moderna, sobre o transgenderismo ou a nova (in)tolerância? Se desejamos aprender com os antepassados, não seria mais sábio escolher algum mais recente? Não necessariamente.

O Pastor como Clínico Geral 

Um pastor é, por definição, algo semelhante a um clínico geral. Não é especialista em, digamos, divórcio e novo casamento, história de missões, análise cultural ou períodos específicos da história da igreja. No entanto, a maioria dos pastores necessita desenvolver conhecimentos básicos mínimos em todas estas áreas, como parte da aplicação da Palavra de Deus às pessoas ao seu redor. Isto significa que ele tem obrigação de dedicar algum tempo a cada ano à leitura em áreas abrangentes. Uma destas áreas é a teologia histórica. A literatura histórica bem selecionada nos expõe a diferentes culturas e tempos, expande nossos horizontes e nos permite ver como os cristãos de outros tempos e locais refletiram sobre o que a Bíblia diz e como aplicar o evangelho a toda a vida. Continue a ler!

Em segundo lugar e mais especificamente, um conhecimento progressivo da teologia histórica é uma maravilha para destruir a ilusão de que a exegese perspicaz e rigorosa começou nos séculos XIX ou XX. Nem tudo o que foi escrito há 500 anos, ou há 1.500 anos, é completamente admirável e vale a pena repetir, da mesma maneira como nem tudo escrito hoje é completamente admirável e vale a pena repetir. Mas tal leitura histórica é o único antídoto efetivo para a trágica atitude de um seminário (nome retido para proteger os culpados) que por muito tempo argumentou que seus alunos somente necessitavam aprender a fazer uma boa exegese e uma hermenêutica responsável: não necessitavam aprender o que os outros pensam, pois dominando a exegese e a hermenêutica, bastava virar a manivela e uma teologia fiel sairia por si só. Quanta ingenuidade de pensar que a exegese e a hermenêutica são disciplinas neutras e livres de valores! A verdade é que necessitamos estudar outros pastores teólogos, tanto de nossos dias quanto do passado, se quisermos crescer em riqueza, nuance, insight, autocorreção e fidelidade ao evangelho.

Por que a Reforma? 

Mas por que focar especificamente na Reforma? Embora tenha sido desencadeada pela questão das indulgências, o debate sobre indulgências logo levou, direta ou indiretamente, a debates exploratórios sobre a autoridade, o lócus da revelação (Podemos desfrutar de um depósito ostensivamente dado à igreja abrangendo tanto as Escrituras quanto a Tradição, ou nos ater somente às Escrituras?), sobre o purgatório e a autoridade pela qual pecados são perdoados, sobre o tesouro de satisfações, sobre a natureza e o lócus da igreja, a natureza e autoridade de sacerdotes/presbíteros, a natureza e função da Eucaristia, sobre os santos, a justificação, a santificação, a natureza do novo nascimento, o poder escravizador do pecado, e muito mais.

Todas estas questões ainda são centrais no currículo teológico atual. Mesmo a questão das indulgências ainda é importante: tanto o Papa Bento quanto o Papa Francisco ofereceram indulgências plenárias especiais sob certas circunstâncias (embora em uma estrutura mais restrita do que a adotada por Tetzel). Além disso, o estudo da Reforma é especialmente salutar como resposta àqueles que pensam que a chamada “Grande Tradição”, preservada nos primeiros credos ecumênicos, é invariavelmente uma base adequada para a unidade ecumênica, como se não houvesse heresias inventadas após o século IV. Nesta frente, o estudo da Reforma é benéfico para gerar um pouco de realismo histórico.

Além da hermenêutica característica da Reforma que brotou da “sola Scriptura”, os Reformadores batalharam arduamente para desenvolver uma hermenêutica rigorosa que se afastasse dos caprichos da hermenêutica quádrupla que chegou ao topo durante a Idade Média. Isto não significa que fossem literalistas simplistas, incapazes de apreciar diferentes gêneros literários, metáforas sutis, e outras figuras simbólicas da fala; significa, ao contrário, que eles se esforçaram muito para deixar a Escritura falar em seus próprios termos, sem permitir que métodos externos fossem impostos ao texto como se fosse um filtro extra-textual projetado para garantir as respostas “certas”. Em parte, isso estava ligado à compreensão de “claritas Scripturae”, a perspicuidade ou clareza das Escrituras.

A teoria católica sobre a espiritualidade geralmente distingue entre a vida dos católicos comuns e a vida espiritual daqueles que são católicos realmente profundamente comprometidos. É quase uma versão católica da teologia da “vida superior”. Diz-se que leva à conexão mística com Deus, e que se caracteriza por práticas espirituais e disciplinas extraordinárias. Mas embora eu tenha lido bem, digamos, Julian de Norwich, encontrei grande quantidade de misticismo subjetivo e praticamente nenhum fundamento nas Escrituras ou no evangelho. E, por tudo que me é precioso, não consigo imaginar Pedro ou Paulo recomendando a retirada monástica para alcançar uma maior espiritualidade: é sempre um perigo quando certas práticas ascéticas se tornam caminhos normativos para a espiritualidade, quando não há apoio apostólico para elas.

Nossa geração contemporânea, cansada de abordagens meramente cerebrais ao cristianismo, é atraída por padrões patrísticos tardios ou medievais de espiritualidade. Que alívio, então, acorrer aos mais calorosos escritos dos Reformadores, e descobrir de novo a busca de Deus e sua justiça bem fundamentada nas sagradas Escrituras. É por isto que a carta de Lutero ao seu barbeiro permanece tão clássica: está cheia de aplicação piedosa do evangelho aos cristãos comuns, elaborando uma concepção de espiritualidade que não é reservada à elite dos eleitos, mas disponível a todos os irmãos e irmãs em Cristo. Da mesma forma, os capítulos de abertura do Livro III das Institutas de Calvino proporcionam uma reflexão mais profunda sobre a verdadeira espiritualidade do que muitos volumes contemporâneos muito mais extensos.

A Reforma é de importância central para a compreensão da história ocidental moderna. Três movimentos em grande escala prepararam o cenário para o mundo ocidental contemporâneo: o Renascimento, a Reforma e o Iluminismo. Cada um dos três é complexo, e os estudiosos continuam a debater suas muitas facetas. No entanto, a reivindicação básica do papel fundamental destes três movimentos não pode ser facilmente contestada.

Por que esta Reforma? 

Há lições a serem aprendidas com a Reforma sobre a soberania de Deus em movimentos de reavivamento e reforma. Afinal de contas, houve outros reformadores e movimentos de reforma que eram promissores, mas basicamente se dissiparam. John Wycliffe (c.1320 – 1384) era um teólogo, filósofo, eclesiástico, reformador eclesiástico e tradutor bíblico, e o trabalho que ele fez prenunciou a Reforma, mas não se pode dizer que a precipitou. Jan Hus (1369 – 1415) foi um padre checo, reformador, estudioso, reitor da Universidade Charles em Praga, e arquiteto de um movimento reformador, muitas vezes chamado de “hussitismo”, mas como seria de esperar, foi martirizado e seu movimento, embora importante na Boêmia, alcançou pouco mais na Europa do que um status de antecessor.

Por que razão Lutero, Calvino e Zwinglio viveram, o tempo suficiente para dar direção a uma Reforma maciça, enquanto o tradutor bíblico William Tyndale (1494—1536) foi assassinado? A retrospectiva histórica oferece muitas razões pelas quais este viveu e aquele morreu, por que uma ação reformadora se esgotou e outra acendeu uma chama irreprimível. Vale a pena entender os detalhes históricos mas os olhos da fé verão a mão de Deus na reforma genuína e nos recordarão de oferecer nossos louvores pelo que Ele fez, e nossas petições pelo que ainda lhe pedimos que faça.

Exponha a Bíblia, envolva-se com a Teologia 

A Reforma se destaca como um movimento que buscou integrar a exegese dos livros bíblicos com o que hoje chamaríamos de teologia sistemática. Nem todos os Reformadores fizeram isso da mesma maneira. Alguns agiram como se estivessem expondo os textos bíblicos, mas tendiam, na realidade, a saltar de uma palavra ou frase seminal para a próxima palavra ou frase seminal, parando em cada ponto para descarregar tratamentos teológicos dos vários “loci”.

Outros, como Bucer, seguiram o texto mais de perto, mas também descarregaram seu tratamento dos “loci” no caminho, tornando seus comentários extraordinariamente longos e densos. Calvino se esforçou em seus comentários para o que chamou de “brevidade lúcida”, e reservou sua teologia sistemática principalmente para aquilo que se encorpou e se tornou os quatro volumes de Institutas da Religião Cristã. Na verdade, os comentários de Calvino são tão “simples” que não poucos estudiosos o criticaram por não incluir teologia suficiente neles.

Mas o que é impressionante sobre todos estes Reformadores, independentemente de seus sucessos ou fracassos para realizar uma integração adequada, é a maneira como eles simultaneamente tentaram expor a Bíblia e se envolver em análise teológica séria. Em contraste, hoje poucos sistemáticos são excelentes exegetas, e poucos exegetas manifestam muito interesse pela teologia sistemática. As exceções apenas comprovam a regra.

Compreender o tempo deles — e o nosso 

Os Reformadores entendiam seus tempos muito bem. Embora se apoiassem na “norma normativa” das Sagradas Escrituras, eles realmente entendiam onde estavam as linhas sísmicas em seu época e locais. Alguns dos mesmos problemas permanecem hoje. Por outro lado, o que devemos retirar dos Reformadores a este respeito não é simplesmente uma lista de tópicos sobre os quais eles se concentraram, mas a importância de entender nossos tempos e aprender como engajar nossa época com a verdade das Escrituras.

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A Bíblia profetizou o coronavírus?

Por Jairo Namnún

Por momentos é dífícil acreditar no que vivemos hoje. Países fechados, eventos cancelados, cultos suspensos; supermercados lotados e sem produtos básicos; atrações vazias; e, o mais importante, milhares de pessoas falecidas, centenas de milhares enfermas e milhões assustadas. O coronavírus afeta a quase todos os países do mundo.

Nossa geração nunca experimentou uma pandemia neste nível, e os cristãos ao redor do mundo estão buscando o que podemos aprender e como devemos agir em meio a esta situação. Isto levanta a questão: a Bíblia profetizou o coronavírus? Seria o COVID-19 uma das pragas bíblicas?

Sim, a Bíblia profetizou doenças e pragas

Por um lado, lembremos que a Bíblia fala sobre pragas significativas antes da segunda vinda de Cristo. Em Lucas 21.11, nosso Senhor Jesus adverte seus discípulos: “Haverá grandes terremotos, epidemias e fome em vários lugares, coisas espantosas e também grandes sinais do céu”. Esta passagem mostra uma terra inquieta e em tribulação, mencionando especificamente a existência de pragas e fome como um prelúdio para o fim (Lc 21.9). Essas profecias tem protegido a Igreja nestes 2.000 anos, daqueles que afirmam ser o Messias (Lc 21.8).

Em Apocalipse 6.8, encontramos outra passagem também importante neste momento: “E olhei, e eis um cavalo amarelo e o seu cavaleiro, sendo este chamado Morte; e o Inferno o estava seguindo, e foi-lhes dada autoridade sobre a quarta parte da terra para matar à espada, pela fome, com a mortandade e por meio das feras da terra”. Aqui, abrir o quarto selo produz um cavalo “amarelo” (ou “muito pálido”, isto é, doente), que traz dor e morte através de guerras, doenças e desastres naturais. Esses selos são abertos como juízo de Deus para uma terra surda diante do chamado do evangelho.

Uma última verdade a considerar é a que Romanos 8.22 nos ensina: “Sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora”. O gemido da criação é evidente quando as árvores caem e os animais sofrem, mas é particularmente evidente quando um vírus microscópico é capaz de causar milhares de mortes e paralisar todos os sistemas humanos. Como Deus declarou, vivemos em uma terra disfuncional.

Não, a Bíblia não parece profetizar esta doença e praga

Embora seja verdade que a Bíblia nos adverte e nos apresente a realidade de pragas e doenças e uma terra que geme, podemos dizer, com a consciência limpa, que essas profecias são específicas para o coronavírus? Não é possível, ou provável, que essas profecias tenham sido apropriadas a outras doenças e pragas anteriores, tal como a gripe espanhola (que matou mais de 20 milhões de pessoas)?

Devemos admitir que muitas das profecias bíblicas relacionadas aos tempos apocalípticos têm um sentido mais geral do que específico.

Nessa mesma linha, devemos ter muito cuidado para não forçar um texto bíblico a dizer algo especificamente para a nossa situação atual, pois estaríamos reivindicando o lugar de profetas de Deus. E se não se cumpre? Se Deus decide mostrar graça e essa pandemia for controlada, e nem um quarto da terra morre (como profetizado em Ap 6), nem a segunda vinda de Cristo ocorre em nossa geração (como Lc 21 parece ensinar), quem fica como mentiroso?

De nenhuma maneira nosso Senhor mente, mas nós podemos terminar como mentirosos ou, inclusive, sendo falsos profetas (Dt 18.21-22).

Além disso, não devemos ignorar a advertência de Jesus: “Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão o Pai” (Mt 24.36). Cristo deixa claro que ninguém sabe o momento de sua segunda vinda. Se pensarmos que as profecias sobre pragas e doenças se referem especificamente ao coronavírus, estamos em um território perigoso para afirmar que sabemos mais do que o que o Pai queria que soubéssemos sobre o retorno de Jesus.

Certeza bíblica em tempos de coronavírus

Não há dúvida de que vivemos em tempos difíceis, sem precedentes para a minha geração. Especialistas no assunto falam de possíveis centenas de milhares de outros infectados, o que significará muito mais mortes. E, com toda a probabilidade, levará muito tempo para os mercados econômicos se recuperarem.

Quero crer que estes são sinais antes do fim. Me uno à Igreja que tem clamado Maranata! por 2.000 anos. E acredito firmemente que não são tempos para ficarmos ansiosos, mas de oração (Fp 4.6-7). É também um momento especial para fazer a vontade de Deus, amando os necessitados, particularmente as viúvas e os órfãos ao redor (Tg 1.27), e os idosos que são particularmente suscetíveis a esta doença.

Não podemos dizer com certeza que o coronavírus é o cumprimento de uma profecia bíblica específica, mas podemos ter absoluta confiança de que Deus não se afastou nem um centímetro do Seu trono. Ele continua nos céus, fazendo o que bem lhe parece (Sl 115.3), para sua glória e nosso bem.

Ora, ao começarem estas coisas a suceder, exultai e erguei a vossa cabeça; porque a vossa redenção se aproxima (Lc 21.28).


20 outubro 2020

A Mensagem da Reforma Para os dias de Hoje

Por Solano Portela 

I. Por que Lembrar a Reforma? 

Em 31 de outubro de 1517 Martinho Lutero pregou as suas hoje famosas 95 Teses na porta da catedral de Wittenberg. Periodicamente as igrejas evangélicas relembram aqueles eventos que, na soberana providência de Deus, preservaram viva a sua igreja. Muitos, entretanto, questionam essas comemorações e alguns chegam até a contestar a lembrança da Reforma. "Por que considerar o que aconteceu há quase 500 anos?"

Seguramente muitos não estudam a Reforma por mero desconhecimento, por falta de informação, por não se aperceberem da sua importância na vida da igreja e da humanidade. Entretanto, muitos procuram um esquecimento voluntário daqueles eventos do século XVI. Martin Lloyd-Jones 1 nos fala que entre aqueles que rejeitam a memória da Reforma temos, basicamente, dois tipos de argumentação: 1. "O passado não tem nada a nos ensinar." Segundo este ponto de vista, o progresso científico e o futuro é o que interessa. Firmadas em uma mentalidade evolucionista, estas pessoas partem para uma abordagem histórica de que "o presente é sempre melhor do que o passado" e assim nada enxergam na história que possa nos servir de lição, apoio, ou alerta. 2. A segunda forma de rejeição parte daqueles que vêem a Reforma como uma tragédia na história religiosa da humanidade. Estes afirmam que deveríamos estar estudando a unidade em vez de um movimento que trouxe a divisão e o cisma ao cristianismo. Dentro desta visão, perdemos tempo quando nos ocupamos de algo tão negativo.

Podemos dar graças, entretanto, pelo fato de que um segmento da igreja ainda acha importante estar relembrando e aplicando as questões levantadas pelos reformadores. Mas é o mesmo Martin Lloyd-Jones que alerta para um perigo que ainda existe dentro do interesse pelos acontecimentos que marcaram o século XVI. Na realidade, ele nos confronta com uma forma errada e uma forma certa de relembrar o passado, do ponto de vista religioso.

A forma errada, seria estudar o passado por motivos meramente históricos. Esse estudo seria semelhante à abordagem que um antiquário dedica a um objeto. Por exemplo, quando ele examina uma cadeira, ele não está interessado em saber se ela é confortável, se dá para sentar-se bem nela, se ela cumpre adequadamente a função de cadeira. Basicamente a preocupação se resume à sua idade, ao seu estado de conservação e, principalmente, a quem pertenceu. Isto determinará o valor daquele objeto para o antiquário e, conseqüentemente, o seu estudo é motivado por essa visão.

Em Mateus 23.29-35 teríamos um exemplo dessa abordagem errada do passado. O trecho diz:

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! ...porque edificais os sepulcros dos profetas, adornais os túmulos dos justos, e dizeis: Se tivéssemos vivido nos dias de nossos pais, não teríamos sido seus cúmplices no sangue dos profetas. Assim, contra vós mesmos testificais que sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós, pois, a medida de vossos pais. Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do inferno? Por isso eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas. A uns matareis e crucificareis; a outros açoitareis nas vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade; para que sobre vós recaia todo o sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o santuário e o altar.


Jesus diz que aqueles homens pagavam tributo à memória dos profetas e líderes religiosos do passado. Eles prezavam tanto a história, que cuidavam dos sepulcros e os enfeitavam. Proclamavam a todos que os profetas eram homens bons e nobres e atacavam quem os havia rejeitado. Diziam eles: "se estivéssemos lá, se vivêssemos naquela época, não teríamos feito isso!" Mas Jesus não se impressiona e os chama de hipócritas! A argumentação de Jesus é a seguinte: Se vocês se dizem admiradores dos profetas, como é que estão contra aqueles que representam os profetas e proclamam a mesma mensagem que eles proclamaram? Ele prova a sinceridade deles pondo a descoberto a sua atitude no presente para com aqueles que agora pregam a mensagem de Deus e mostra que eles próprios seriam perseguidores e assassinos dos proclamadores da mensagem dos profetas.

Esse é também o nosso teste: uma coisa é olhar para trás e louvar homens famosos, mas isso pode ser pura hipocrisia se não aceitamos, no presente, aqueles que pregam a mensagem de Lutero e de Calvino. Somos mesmo admiradores da Reforma, daqueles grandes profetas de Deus?

Mas existe uma forma correta de relembrar o passado. Nós a deduzimos não apenas por exclusão e inferência do texto anterior, mas porque temos um trecho na Palavra de Deus—Hebreus 13.7-8, que diz: "Lembrai-vos dos vossos guias, os quais vos falaram a palavra de Deus, e, atentando para o êxito da sua carreira, imitai-lhes a fé. Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente."

A maneira correta de relembrar a Reforma é, portanto, verificar a mensagem, a Palavra de Deus, como foi proclamada, e isso não apenas por um interesse histórico de "antiquário," mas para que possamos imitar a fé demonstrada pelos reformadores. Devemos observar aqueles eventos e aqueles homens, para que possamos aprender deles e seguir o seu exemplo, discernindo a sua mensagem e aplicando-a aos nossos dias.

II. Distorções Verificadas na Lembrança da Reforma

Muitos de nós que crescemos neste país de maioria católica podemos nos recordar de, numa ou outra ocasião, termos ouvido alguma posição distorcida sobre os fatos da Reforma do Século XVI, ou sobre os reformadores. Uma das versões comuns, na visão da Igreja Católica, era apresentar Lutero como um monge que queria casar e que por isso teria brigado com o papa. Outros diziam que Lutero foi alguém que ambicionava o poder político. Ainda outros falam que Lutero era apenas um místico rebelde, sem convicções reais e profundas. Até mesmo a descrição dele como doente da alma, psicopata, enganador e falso profeta permanece em vários escritos de historiadores famosos do período. 2 Um famoso autor e historiador católico brasileiro chegou a escrever que "excomungado em Worms, em 1521, Lutero entregou-se ao ócio e à moleza." 3

Em anos mais recentes, um novo de tipo de abordagem da Reforma tem surgido nos círculos católicos, que igualmente representa alguma forma de distorção. Por exemplo, nos 500 anos do nascimento de Lutero (1983) o Papa participou de algumas cerimônias comemorativas do evento, na Alemanha. 4 Certamente não foi por convencimento das verdades ensinadas por Lutero, pois a igreja que representa nada mudou doutrinariamente após a sua participação. A visita do Papa evidencia, entretanto, uma comprovação de que a imagem de Lutero e os princípios que pregava estão sendo alvo de revisionismo histórico e de distorções. Diluindo-se a força das doutrinas pregadas pelos reformadores, possibilita-se uma aproximação com os fatos históricos descontextualizados.

Em 1967, nos 450 anos da Reforma, a revista TIME escreveu o seguinte: "O domingo da Reforma está se tornando um evento ecumênico que olha para o futuro, em vez de para o passado." 5 Na mesma ocasião, um semanário jesuíta fez esta afirmação: "Lutero foi um profundo pensador espiritual que foi levado à revolta por papas mundanos e incompetentes." 6 Podemos ver como essa colocação faz da Reforma uma revolta contra pessoas temporais e não contra um sistema de doutrinas de uma igreja apóstata, que persiste até hoje.

Refletindo o sentimento ecumênico que tem permeado a segunda metade do século XX, bispos das igrejas católica e luterana dos Estados Unidos fizeram uma declaração solidária, no aniversário da Reforma, dizendo o seguinte: "…recomendamos um programa conjunto, entre os membros de nossas igrejas, de estudos, reflexão e oração." 7 Podemos imaginar discípulos jesuítas consciente e sinceramente fazendo estudos, reflexão e oração em comemoração à Reforma do Século XVI? Certamente só se ignorarem os pontos fundamentais de doutrina levantados pelos reformadores.

Refletindo uma visão político-sociológica da Reforma, uma outra distorção permeou durante muito tempo o pensamento revisionista da história. Na época em que o comunismo ainda imperava na Europa oriental, porta-vozes do partido comunista da Alemanha relembraram Lutero como sendo "um precursor da revolução." 8 

III. Esquecimento Doutrinário dos Princípios da Reforma

Muitas das ações descritas acima, de comemoração conjunta da Reforma por católicos e protestantes, só ocorrem porque não se fala nas doutrinas cardeais levantadas pelo movimento do século XVI. Tristemente, temos observado que mesmo no campo chamado "evangélico" a situação é semelhante. Raras são as igrejas e denominações evangélicas que ensinam o que foi a Reforma do Século XVI e muito poucas as que comemoram o evento e aproveitam para relembrar e reaplicar os princípios nela levantados. Mais recentemente, observamos que tem sido removida a clara linha que separa as igrejas protestantes da católica quanto ao entendimento da fé cristã e da salvação. Esta ação, até alguns anos atrás praticada somente pela teologia liberal, que já havia declaradamente abandonado os princípios norteadores da Palavra de Deus, hoje está presente no campo protestante evangélico.

A falta de discernimento e conhecimento histórico, prático e teológico tem-se achado até mesmo dentro do campo ortodoxo e inclui teólogos reformados e tradicionais. Referimo-nos ao documento "Evangélicos e Católicos Juntos" (Evangelicals and Catholics Together), publicado em 1994 nos Estados Unidos, que tem sido uma fonte de controvérsia desde a sua divulgação.

A base e intenção do documento foi a realização de ações conjuntas de cunho moral-político por católicos e protestantes, 9 mas ele evidencia uma grande falta de discernimento e sabedoria. Por exemplo, o documento encoraja a que as pessoas convertidas sejam respeitadas em sua decisão de filiar-se quer a uma igreja católica quer a uma protestante. 10 Essas declarações foram emitidas como se a fé fosse a mesma, como se a doutrina fosse igual, como se a base dos ensinamentos fosse comum, como se as distinções inexistissem ou fossem extremamente secundárias.

A premissa básica do documento "Evangélicos e Católicos Juntos" é que a evangelização de católicos é algo indesejável e não recomendável, uma vez que a verdadeira fé e prática cristã devem já estar presentes na Igreja de Roma. Em sua essência, esse documento é a grande evidência do esquecimento da Reforma do Século XVI e do que ela representou e representa para a verdadeira igreja de Cristo.

Algum evangélico poderia argumentar, "mas isso é coisa de americano, não atinge o nosso país!" Ledo engano! A conhecida e prestigiada Revista Ultimato trouxe em suas páginas, no número de setembro de 1996, artigos e depoimentos, advindos do campo evangélico conservador, refletindo basicamente a mesma compreensão do documento "Evangélicos e Católicos Juntos," ou seja: as distinções com relação à Igreja de Roma seriam secundárias e não essenciais.

Tal situação reflete pelo menos uma crassa ignorância da doutrina católica romana. Por exemplo, os canônes 9 e 10 do Concílio de Trento, escritos no auge da Contra-Reforma mas nunca ab-rogados até os dias de hoje, dizem o seguinte:

Cânon 9: Se alguém disser que o pecador é justificado somente pela fé, querendo dizer que nada coopera com a fé para a obtenção da graça da justificação; e se alguém disser que as pessoas não são preparadas e predispostas pela ação de sua própria vontade—que seja maldito.

Cânon 11: Se alguém disser que os homens são justificados unicamente pela imputação da justiça de Cristo ou unicamente pela remissão dos seus pecados, excluindo a graça e amor que são derramados em seus corações pelo Espírito Santo, e que permanece neles; ou se alguém disser que a graça pela qual somos justificados reflete somente a vontade de Deus—que seja maldito. 11

Estas declarações, ou melhor, maldições, foram pronunciadas contra os protestantes. Elas atingem o cerne da doutrina da justificação somente pela fé. São afirmações contra a defesa inabalável da soberania de Deus na salvação, proclamada pela Reforma do Século XVI, e continuam fazendo parte dos ensinamentos da Igreja Católica.

A visão distorcida do evangelho e da evangelização, no campo católico romano, não é algo que data apenas da era medieval. Veja-se esta declaração extraída da encíclica papal "O Evangelho da Vida," escrita e divulgada à Igreja em 1995: "O Evangelho é a proclamação de que Jesus possui um relacionamento singular com todas as pessoas. Isso faz com que vejamos em cada face humana a face de Cristo." 12 Certamente teríamos que chamar esta visão do evangelho de universalismo e declará-la contrária à fé cristã histórica.

Perante esse emaranhado de opiniões tão diferenciadas, perante o testemunho e o registro implacável da história, perante a crise de identidade, de doutrina e de prática litúrgica que nossas igrejas atravessam, qual deve ser a nossa compreensão da Reforma?

IV. Considerações Práticas Sobre a Reforma e os Reformadores

Nosso apreço pela Reforma e suas doutrinas não deve levar-nos a uma visão utópica e idealista com relação aos seus personagens principais. Devemos reconhecer os seus feitos, mas também as suas limitações. É na compreensão da falibilidade humana que detectamos a mão soberana de Deus empreendendo os seus propósitos na história. Vejamos alguns pontos que valem a pena ser recordados:

A. Lutero foi um Homem Falível

As 95 Teses de Lutero 13 realmente representaram um marco e um ponto de partida para a recuperação das sãs doutrinas. Entre as teses encontramos expressões de compreensão dos ensinamentos da Bíblia, como por exemplo na Tese 62 ("O verdadeiro tesouro da Igreja é o sacrossanto Evangelho da glória e da graça de Deus") e na Tese 94 ("Os cristãos devem ser exortados a seguir a Cristo, a sua cabeça, com diligência…"). Entretanto, devemos reconhecer que elas estão longe de serem, em sua totalidade, expressões precisas da verdadeira fé cristã. Elas registram, na realidade, o início do pensamento de Lutero, que seria trabalhado e refinado por Deus ao longo de seus estudos e experiências posteriores. Vejamos os seguintes exemplos:

  • Lutero faz referência ao purgatório, sem qualquer contestação à doutrina em si, em doze das suas teses (10, 11, 15, 16, 17, 18, 19, 22, 25, 26, 29, 82). Ex.: Tese 29: "Quem disse que todas as almas no Purgatório desejam ser redimidas? Temos exceções registradas nos casos de S. Severino e S. Pascal, de acordo com uma lenda sobre eles."
  • Além da menção aos santos na tese acima, Lutero faz referência a Maria como mãe de Deus (Tese 75), aparentemente não no sentido histórico do termo (o termo histórico, em grego theotokos, tinha o propósito de reconhecer a divindade de Jesus 14), mas no conceito católico da expressão, que infere a existência de um poder especial em Maria. Diz a Tese 75: "É loucura considerar que as indulgências papais têm tão grande poder que elas poderiam absolver um homem que tivesse feito o impossível e violado a própria mãe de Deus."
  • Quatro teses inferem legitimidade ao papado e à sucessão apostólica (77, 5, 6, 9). Ex.: Tese 77: "É blasfêmia contra São Pedro e contra o Papa dizer que São Pedro, se fosse o papa atual, não poderia conceder graças maiores [do que as atualmente concedidas]."

Além disso, verificamos que resquícios do romanismo se fizeram presentes na formulação da Igreja Luterana, principalmente na sua estrutura hierárquica e na compreensão quase católica dos elementos da Ceia do Senhor. Possivelmente também poderíamos dizer que na Reforma encontramos individualismo em excesso e falta de unidade entre irmãos de mesma persuasão teológica (principalmente nas interações dos luteranos com Zuínglio e Calvino). Mas, com todas essas limitações, os reformadores foram poderosamente utilizados por Deus na preservação das suas verdades.

B. A Revolta de Lutero foi Eminentemente Espiritual

Não podemos compreender a Reforma se acharmos que Lutero liderou uma revolta contra pessoas, contra padres corruptos, apenas. A ação de Lutero foi uma revolta contra uma estrutura errada e uma doutrina errada de uma igreja que distorcia a salvação. Não foi um movimento sociológico: ele não pretendia ensinar a salvação do homem pela reforma da sociedade, mas compreendia que a sociedade era reformada pelas ações do homem resgatado por Deus. Na realidade, a Reforma do Século XVI foi um grande reavivamento espiritual operado por Deus, que começou com uma experiência pessoal de conversão. 

C. Lutero não Formulou Novas Doutrinas, ou Novas Verdades, mas Redescobriu a Bíblia em sua Pureza e Singularidade

As 95 Teses representam coragem, despreendimento e uma preocupação legítima com o estado decadente da igreja e com a procura dos verdadeiros ensinamentos da Palavra. Mas é um erro acharmos que a Reforma marca o surgimento de várias doutrinas nunca dantes formuladas. A Palavra de Deus, cujas doutrinas estavam soterradas sob o entulho da tradição, é que foi resgatada. Uma das características comuns das seitas é a apresentação de supostas verdades que nunca haviam sido compreendidas, até a sua revelação a algum líder. Essas "verdades" passam a ser determinantes da interpretação das demais e ponto central dos ensinamentos empreendidos. A Reforma coloca-se em completa oposição a esta característica. Nenhum dos reformadores declarou ter "descoberto" qualquer verdade oculta, mas eles tão somente apresentaram em toda singeleza os ensinamentos das Escrituras. Seus comentários e controvérsias versaram sempre sobre a clara exposição da Palavra de Deus.

Mais uma vez, Martin Lloyd-Jones nos indica "que a maior lição que a Reforma Protestante tem a nos ensinar é justamente que o segredo do sucesso, na esfera da Igreja e das coisas do Espírito, é olhar para trás." 15 Lutero e Calvino, diz ele, "foram descobrindo que estiveram redescobrindo o que Agostinho já tinha descoberto e que eles tinham esquecido." 16 

V. A Mensagem da Reforma para os Dias de Hoje

As mensagens proclamadas pela Reforma continuam sendo pertinentes aos nossos dias. Da mesma forma como as Escrituras são sempre atuais e representam a vontade de Deus ao homem, em todas as ocasiões, a Reforma, com suas mensagens extraídas e baseadas nessas Escrituras, transborda em atualidade para a cena contemporânea da igreja evangélica. Vejamos apenas alguns pontos pregados pelos Reformadores e a sua aplicação presente: 

A. A Reforma Resgatou o Conceito do Pecado – Rm 3.10-23

A venda das indulgências mostra como o conceito do pecado estava distorcido na época da Reforma do Século XVI. A igreja medieval e, principalmente, as ações de Tetzel, fugiram totalmente à visão bíblica de que pecado é uma transgressão da Lei de Deus e qualquer falta de conformidade com seus padrões de justiça e santidade. A essência do pecado foi banalizada ao ponto de se acreditar que o seu resgate podia se efetivar pelo dinheiro. É fácil vermos as implicações que a falta de um conceito bíblico de pecado tem para outras doutrinas chaves da fé cristã. Por exemplo: se o resgate é em função da soma de dinheiro paga, como fica a expiação de Cristo, qual a necessidade dela? Ao se insurgir contra as indulgências Lutero estava, na realidade, reapresentando a mensagem da Palavra de Deus sobre o homem, seu estado, suas responsabilidades perante o Deus Santo e Criador, e sua necessidade de redenção.

Hoje esses conceitos estão cada vez mais ausentes da doutrina da igreja contemporânea. A mensagem da Reforma continua necessária aos nossos dias. Estamos nos acostumando a ouvir que todas as ações são legítimas; que pecado é uma conceito relativo e ultrapassado; que o que importa é a felicidade pessoal e não a observância de princípios. Mesmo nos meios evangélicos existe grande falta de discernimento — há uma preocupação muito maior em encontrar justificativas, explicações e racionalizações do que com a convicção de pecado e o arrependimento.

B. A Reforma Pregou a Doutrina da Justificação Somente pela Fé – Gl 3.10-14

A Igreja Católica havia distorcido o conceito da salvação, pregando abertamente que a justificação se processava por intermédio das boas obras de cada fiel. Lendo a Palavra, Lutero verificou quão distanciada esta pregação estava das verdades bíblicas — a salvação era uma graça concedida mediante a fé. Todo o trabalho vem de Deus. As boas obras não fornecem a base para a salvação, mas são evidências e sub-produtos de uma salvação que procede da infinita misericórdia de Deus para com o homem pecador que ele arranca da perdição do pecado.

Hoje estamos novamente perdendo essa compreensão – a mensagem da Reforma é necessária. A justificação pela fé continua sendo esquecida e procura-se a justificação pelas obras. Muitas vezes prega-se e procura-se a justificação perante Deus através do envolvimento em ações de cunho social.

A justificação pela fé está sendo, ultimamente, considerada até um ponto secundário, mesmo no campo evangélico, partindo-se para trabalhos de ampla cooperação, como base de fé e de unidade, como vimos no pensamento expresso pelo documento já referido: Evangélicos e Católicos Juntos.

C. A Reforma Resgatou o Conceito da Autoridade Vital da Palavra de Deus – 2 Pe 1.16-21

Na ocasião da Reforma, a tradição da igreja já havia se incorporado aos padrões determinantes de comportamento e doutrina e, na realidade, já havia superado as prescrições das Escrituras. A Bíblia era conservada distante e afastada da compreensão dos devotos. Era considerada um livro só para os entendidos, obscuro e até perigoso para as massas. Os reformadores redescobriram e levantaram bem alto o único padrão de fé e prática: a Palavra de Deus, e por este padrão aferiram tanto as autoridades como as práticas religiosas em vigor.

Hoje o mundo está sem um padrão. Mas não é somente o mundo: a própria igreja evangélica está voltando a enterrar o seu padrão em meio a um entulho místico pseudo-espiritual – a mensagem da Reforma continua necessária.

Sabemos que nas pessoas sem Deus imperam o subjetivismo e o existencialismo. A única regra de prática existente parece ser: "Comamos e bebamos porque amanhã morreremos." Verificamos que nas seitas existe uma multiplicidade de padrões. Livros e escritos são apresentados como se a sua autoridade fosse igual ou até superior à da Bíblia. A cena comum é a apresentação de novas revelações, geralmente de natureza escatológica e com características fluidas, contraditórias e totalmente duvidosas.

No meio eclesiástico liberal, já nos acostumamos a identificar o ataque constante à veracidade das Escrituras. Já vamos com mais de dois séculos de contestação sistemática da Palavra de Deus, como se a fé cristã verdadeira fosse capaz de subsistir sem o seu alicerce principal.

Mas é no campo evangélico que somos perturbados com os últimos ataques à Bíblia como regra inerrante de fé e prática. Ultimamente muitos chamados intelectuais têm questionado a doutrina que coloca a Bíblia como um livro inspirado, livre de erro. Podemos tomar como exemplo o caso do Fuller Theological Seminary. Esta famosa instituição evangélica foi fundada em 1947 sobre princípios corretos. Logo após o seu início, formulou-se uma declaração de fé que especificava: "…os livros do Velho Testamento e do Novo Testamento…, nos originais, são inspirados plenariamente e livres de erro, no todo e em suas partes…" Entretanto, em 1968, o filho do fundador, Daniel Fuller, que havia estudado sob Karl Barth, começou a questionar a inerrância da Bíblia, fazendo distinção entre trechos "revelativos" e trechos "não revelativos" das Escrituras. Foi seguido nessa posição pelo presidente, David Hubbard, e por vários outros professores, todos considerados evangélicos. 17 Logicamente não há critério coerente ou legítimo para fazer essa distinção. Subtrai-se da igreja o seu padrão, derruba-se um dos pilares da Reforma, e a igreja é retroagida a uma condição medieval de dependência dos especialistas que nos dirão quais as partes em que devemos crer realmente e quais as que devemos descartar como mera invenção humana.

No campo evangélico neopentecostal, a suficiência da Palavra de Deus é desconsiderada e substituída pelas supostas "novas revelações," que passam a ser determinantes das doutrinas e práticas do povo de Deus.

Em seu Capítulo I, Seção II, a Confissão de Fé de Westminster apresenta a mensagem inequívoca da Reforma do Século XVI, cada vez mais válida para os nossos dias. Ali a Bíblia é descrita como sendo a "regra de fé e de prática."

D. A Reforma Redescobriu na Palavra a Doutrina do Sacerdócio Individual do Crente – Hb 10.19-21

O sacerdócio individual do crente foi uma outra doutrina resgatada. Ela apresenta a pessoa de Cristo como único mediador entre Deus e os homens, concedendo a cada salvo "acesso direto ao trono" por intermédio do sacrifício de Cristo na cruz e pela operação do Espírito Santo no "homem interior." 18 O ensinamento bíblico, transmitido pela Reforma, eliminava os vários intermediários que haviam surgido ao longo dos séculos entre o Deus que salva e o pecador redimido. Na ocasião, esse era um ensinamento totalmente estranho à Igreja de Roma, que sempre se apresentou como tendo a palavra final de autoridade e interpretação das Escrituras.

Lutero rebelou-se contra o véu de obscuridade que a Igreja lançava sobre as verdades espirituais e levou os fiéis de volta ao trono da graça. Isso proporcionou uma abertura providencial no conhecimento teológico e religioso. Lutero sabia disso, mas também sabia que o acesso a Deus deveria estar fundamentado nas verdades da Bíblia, tanto assim que um de seus primeiros esforços, após a quebra com a Igreja Romana, foi a tradução da Palavra de Deus para a língua falada em seu país: o alemão.

O ensinamento do sacerdócio individual do crente foi o grande responsável pelo estudo aprofundado das Escrituras e pela disseminação da fé reformada. Levados a proceder como os bereanos, 19 os crentes verificaram que não dependiam do clero para o entendimento e aplicação dos preceitos de Deus e passaram a penetrar com determinação nas doutrinas cristãs.

A mensagem da Reforma continua sendo necessária hoje. A igreja contemporânea está multiplicando-se em quantidade de adeptos, mas é uma multiplicação estranha porque é acompanhada de uma preguiça mental quanto ao estudo. Parece que fomos todos tomados de anorexia espiritual, pois nos contentamos com muito pouco, nos achamos mestres sem estudar, nos concentramos na periferia e não no cerne das doutrinas, e ficamos felizes com o recebimento só do "leite" e não da "carne."

A mensagem da Reforma é necessária para que não venhamos a testemunhar a consolidação de toda uma geração de "cristãos analfabetos." Em vez de procurarmos coisas "enlatadas" e de deixar que apenas formas de entretenimento povoem nossas mentes e corações, devemos lembrar-nos constantemente da importância de "guardar a palavra no coração."

Precisamos nos aperceber de que o conteúdo da Palavra de Deus é verdade proposicional objetiva. Mas essa objetividade tem que ser acompanhada do nosso estudo e da nossa capacidade de compreensão, sob a iluminação do Espírito Santo, e da aplicação coerente dos ensinamentos dessa Palavra em nossas vidas.

E. A Reforma Apresentou, de Forma Clara e Inequívoca, o Conceito da Soberania de Deus — Salmo 24

Na ocasião da Reforma, as expressões de religiosidade tinham se tornado totalmente centralizadas no homem. Isso ocorreu principalmente pela grande influência de Tomás de Aquino na sistematização do pensamento católico romano. Abraçando as idéias de Pelágio, Aquino enfatizou fortemente o livre arbítrio do ser humano, desconsiderando a gravidade da escravidão ao pecado que o torna incapaz de escolher o bem, a não ser que a ele seja direcionado por Deus. Lutero reconheceu que a salvação se constituía em algo mais que uma mera convicção intelectual. Era, na realidade, um milagre da parte de Deus e por isso ele tanto pregou como escreveu sobre "a prisão do arbítrio." Costumamos atribuir a cristalização das doutrinas relacionadas com a soberania de Deus a João Calvino apenas, mas o ensinamento bíblico de Lutero traz, com não menor veemência, uma teologia teocêntrica na qual Deus reina soberanamente em todos os sentidos.

Hoje, a mensagem continua a ser necessária, pois o homem, e não Deus, permanece no centro das atenções. Mesmo dentro dos círculos evangélicos, nossa evangelização é efetivada tendo a felicidade do homem como alvo principal, e não a glória de Deus. Até a nossa liturgia é desenvolvida em torno de algo que nos faça "sentir bem," e não com o objetivo maior da glorificação a Deus. Nesse aspecto, deveríamos estar atentos à mensagem de Amós, que nos ensina (Am 4.4-5) que Deus não se impressiona com uma liturgia que não é direcionada a ele. 20 Nesse trecho vemos que a adoração realizada em Betel 21 e Gilgal 22 tinha várias características dos cultos contemporâneos:

1. Os locais eram suntuosos e famosos (Betel possuía belas fontes no topo da montanha).

2. A periodicidade dos cultos e possivelmente a freqüência era exemplar (reuniam-se diariamente).

3. As contribuições eram generosas, superando até os padrões de Deus (de três em três dias traziam as ofertas).

4. O louvor era abundante (sacrifícios de louvor eram ofertados; Am 5.23 e 6.5 também fala do estrépito dos cânticos e da transbordante música instrumental).

5. Havia bastante publicidade (as ofertas eram divulgadas e apregoadas).

6. Havia alegria e deleite geral nos trabalhos ("disso gostais," diz o profeta).

O resultado de toda essa adoração centralizada no homem foi a mão pesada de Deus em julgamento sobre aquela sociedade insensível (com aquele culto, as pessoas, dizia o profeta, "multiplicavam as suas transgressões"). Realmente, à semelhança da Reforma, precisamos resgatar a pregação da soberania de Deus e demonstrar essa doutrina na prática de nossas vidas e na de nossas igrejas.

Conclusão

Devemos reconhecer a Reforma como um movimento operado por homens falíveis, mas poderosamente utilizados pelo Espírito Santo de Deus para resgatar suas verdades e preservar a sua igreja. Não devemos endeusar os reformadores nem a Reforma, mas não podemos deixá-la esquecida e nem deixar de proclamar a sua mensagem, que reflete o ensinamento da Palavra de Deus aos dias de hoje. A natureza humana continua a mesma, submersa em pecado. Os problemas e situações tendem a repetir-se, até no seio da igreja. O Deus da Reforma fala ao mundo hoje, com a mesma mensagem eterna. Devemos, em oração e temor, ter a coragem de proclamá-la à nossa igreja.

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Notas:

1 D. M. Lloyd-Jones, Rememorando a Reforma (São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994) 2-5.
2 O Rev. Sabatini Lalli compila várias dessas distorções em seu livro Lutero: Cinco Séculos Depois (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1983) 4-5.
3 Plínio Corrêa de Oliveira, Folha de São Paulo (10.01.1984), 2. O autor cita uma carta de Lutero a Melanchton para provar o seu ponto, na qual Lutero reclama da sua preguiça. Provavelmente as colocações expressam o profundo sentimento de incapacidade perante as grandes tarefas que confrontam os cristãos verdadeiros e responsáveis. O autor parece desconhecer que enquanto Lutero se entregava "ao ócio e à moleza," como diz, ele entre outras coisas traduziu a Bíblia em sua totalidade.
4 Jornal de Brasília—Caderno Internacional (10.11.1983), 11, e Isto É (09.11.1983), 37.
5 Time (24.03.1967), citado por Dr. Allen A. MacRae em Luther and the Reformation (New York: American Council of Christian Churches, 1967) 2.
6 MacRae, Luther and the Reformation, 2.
7 Ibid.
8 Time (24.03.1967), citado em The Christian News (N. Haven: Lutheran News, 1983); (27.06.1983), 18.
9 Reconhecemos que algumas dessas ações possuem validade moral, como, por exemplo, levantar a voz conjunta da sociedade contra o crime do aborto, contra a promiscuidade defendida pelos meios de comunicação, etc.
10 O cristão que "…experimentou a conversão…" deve ser "…continuamente respeitado... em sua decisão acerca de compromisso e participação comunitária…" Também, "…os que são convertidos… devem receber plena liberdade e respeito para analisar e decidir em que comunidade irão viver a sua nova vida em Cristo."
11 Transcritos no Western Reformed Seminary Journal 2/2 (verão 1995) 15.
12 Encíclica Evangelium Vitae, pt. 81.
13 O texto completo das 95 teses em inglês pode ser obtido através da Internet, no seguinte endereço: http://www.bibleclass.com/lib/95.htm.
14 Termo utilizado na igreja desde Orígenes (Escola de Alexandria), atacado por Nestório no quinto século, mas aprovado e acolhido pelos Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451). Posteriormente, a Igreja Católica veio a distorcer o significado de "Mãe de Deus" — em vez de representar uma defesa da divindade de Cristo, o termo passou a expressar uma situação privilegiada de Maria em poder e essência, como objeto próprio de adoração e fonte de poder.
15 Lloyd-Jones, Rememorando a Reforma, 8.
16 Ibid.
17 Harold Lindsell, The Battle for the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1976) 106-121. Exemplos de outros autores famosos (considerados evangélicos) que questionam a inerrância: Paul K. Jewett e George Eldon Ladd.
18 Ef 2.18 e 3.16.
19 At 17.11.
20 Várias mensagens expositivas sobre os alertas de Amós, e a sua aplicabilidade aos nossos dias, têm sido proferidas pelo Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes (1995-1997), das quais alguns destes pontos foram extraídos.
21 Betel (casa de Deus): cidade em Samaria, lugar de adoração dos cananeus (El, Baal). Contrasta com o templo dos judeus, chamado de Beth Yaweh, a casa de Jeová.
22 Gilgal: existem várias na Bíblia (pelo menos seis). Esta deve ser a de Js 4.19, Jz 2.1 e 3.19, que ficava perto de Jericó, chegando a abrigar a arca do concerto (Js 18.1). Outros acham que seria a de 2 Rs 2.1-4. Saul utilizou a primeira como base de operações contra os amalequitas. Os 12.11 indica que virou local de sacrifícios. Etimologicamente, pode ter seu significado ligado a um "círculo de pedras."